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Destaques

Chapeuzinho vermelho – e as cores do mundo

Por Marco Vasques e Rubens da Cunha


Não há quem, em um dado momento da infância, não se depare com uma história assombrosa que nos imponha o sentimento de medo. Mesmo as crianças aviltadas, no seu direito à educação, acabam ouvindo o clássico jargão “se você não se comportar, o bicho vem pegar” de um adulto acusativo/punitivo. Os contos infantis, em sua grande maioria, apontam para o conflito existente na ingenuidade da criança com o mundo corrupto dos adultos. Assim, já nos primeiros anos, nosso espírito vai ser conformado para um futuro nefasto, cruel e cheio de armadilhas. Os três porquinhos lutam contra a fúria do lobo faminto. Cinderela sofre com os abusos da madrasta. As peripécias de João e Maria, abandonados pelo pai duas vezes, a pedido da madrasta, estão no imaginário coletivo.

Para além das coletâneas de Charles Perrault e dos irmãos Grimm, existe uma gama de filmes e toda sorte de material com propostas de reler ou apenas recriar, em outro formato, esse confronto entre o mundo adulto e o mundo idílico da infância. Chapeuzinho Vermelho, espetáculo apresentado no Teatro Pedro Ivo, com direção de Camila Bauer, apresenta a versão do diretor e dramaturgo francês Joel Pommerat. A menina, na fábula original, se debaterá com as artimanhas do lobo e também pode ser vista sob o descortinar dos conflitos familiares, pois a avó doente mora sozinha, a mãe faz a menina atravessar a floresta, enfim, são muitas as possibilidades de se adentrar na fábula.



Foto: Adriana Marchiori


A montagem de Camila Bauer aposta nessa estrutura de camadas variadas de leitura e, diga-se, já no começo alcançou o intento desejado porque seduz e amedronta as crianças, como o mote original propõe, e explode também como crítica à exploração sexual infantil, em seus mais variados modos. E aí começam as maravilhas de sutilezas que a encenação propõe. O tratamento dado à exploração sexual infantil é delicado e contraposto a uma poética da imagem que seduz o olhar livre da criança, impondo múltiplas camadas de leituras. Se para um adulto a agressão é revelada no corpo dos atores, no gesto, no movimento velado e nas expressões vocais, para a criança insurge a beleza plástica e sonora, a narração suave da fábula e a leveza com que os atores Fabiane Severo, Guilherme Ferrêra, Henrique Gonçalves e Laura Hickmann comungam a cena com o público.

O teatro feito para crianças não raro cai no clichê do espalhafatoso, do atabalhoamento dos atores, nas interpretações forçadas e exageradas, ou seja, em grande parte da produção teatral para o público infantil impera uma infantilização, no pior sentido do termo, dos elementos cênicos e numa aposta absurda de que a criança é incapaz de um diálogo inteligente e sensível com o trabalho. Chapeuzinho Vermelho foge a todos esses estereótipos e faz o enfrentamento necessário de tratar o olhar infantil com respeito e inteligência. A direção, as atuações, o figurino, o cenário mínimo, composto de uma tela ao fundo, criada pelo artista visual Elcio Rossini, e uma estrutura de ferro multiforme que é manipulada pelos atores o tempo todo são organizados com tamanha maestria a compor o universo feérico e terrível proposto pela montagem.

O autor da peça, Joel Pommerat, iniciou sua carreira como ator aos 19 anos, na Compagnie Théatre de la Mascara, algo que durou apenas 4 anos. Aos 23, ele começou sua carreira como dramaturgo e diretor. Em 1990, fundou a Companhia Louis Brouillard. A partir daí, vem criando uma série de espetáculos exitosos. Suas peças retratam o mundo contemporâneo, cujos personagens condensam a sociedade; vão desde aristocratas, religiosos, pessoas da classe média, trabalhadores. Usando microcosmos, Pommerat aborda grandes temas como a questão da família, do poder, da política. O teatro é, para ele, um lugar de interrogação sobre a experiência humana.


Foto: Adriana Marchiori


As montagens das peças de Pommerat no Brasil começaram na última década. Em 2012, a Companhia Brasileira de Teatro, sob a direção Marcio Abreu, montou Esta criança. Com a presença de Renata Sorrah no elenco, a peça expõe a força criativa de Pommerat ao retratar numa série de quadros as relações familiares. Em 2016, João Fonseca dirigiu A reunificação das duas coreias. O elenco de sete atores se alterna em 47 personagens e protagonizam as 18 histórias da peça. Comédia, tragédia, tragicomédia se misturam e se fragmentam nesse mosaico de relações afetivas, pois, apesar do título, o mote da peça é o amor em suas múltiplas possibilidades e manifestações. Joel Pommerat também apresentou em 2016, em São Paulo, dois de seus espetáculos, na Mostra Internacional de Teatro: Ça Ira (1) Fin de Louis e Cendrillon.

Reconhecido como dramaturgo e diretor, ele prefere ser chamado de “autor de espetáculos”. Ao ser perguntado sobre seu processo criativo, Pommerat responde: “Costumo dizer que eu escrevo performances porque não separo o texto da mise-em-scène. Isso quer dizer que eu escrevo durante os ensaios, em colaboração com a equipe artística. Eu trabalho sobre todos os elementos da representação ao mesmo tempo: a palavra, a luz, o som, os corpos… Assim, por exemplo, meus colaboradores artísticos, Isabelle Deffin (figurinos), Eric Soyer (cenografia e luz), François Leymarie (som), participam desde o início dos ensaios. Outra grande característica do meu trabalho é a improvisação dirigida: eu dou instruções aos atores para que improvisem no espaço de representação com os figurinos e a iluminação… Isso permite concretizar a minha imaginação e então eu escrevo sozinho, mas sempre em uma série de idas e vindas com a cena.”

O espírito desse trabalho colaborativo e performativo foi claramente usado na montagem de Chapeuzinho Vermelho porque todos os elementos de cena estão em constante diálogo. Há que se destacar as partituras corpóreas que transitam entre a narração da história, a dança e a presença dos atores, o que resulta num híbrido que valoriza a palavra, a instauração dos personagens e o movimento dos corpos envolto num todo sem distinção.


Foto: Adriana Marchiori


A tradução do texto de Joel Pommerat ficou por conta da atriz Giovana Soar, da Companhia Brasileira de Teatro. Por outro lado, Camila Bauer é uma das mais importantes pesquisadoras do universo de Pammerat e, com Chapeuzinho Vermelho, amplia a presença do diretor e dramaturgo francês no Brasil. Chapeuzinho Vermelho tem em sua gênese a universalidade; pode ser apreciado com encanto e fantasia pelas crianças e adultos. Se bem que aos adultos fica reservado aquele sabor amargo de entrar na zona de um dos problemas mais delicados de nossa sociedade que é a violência sexual e psicológica que os adultos impõem ao corpo e ao imaginário das crianças. É vermelha nossa vergonha, mas também há o azul de nossos encantos. Chapeuzinho Vermelho é um trabalho que nos enche de beleza estética e nos morde com sua vocação crítica. É necessária e imperiosa, nestes tempos funestos, escusos e nefastos, a construção de acontecimentos artísticos dessa grandeza.




Ficha Técnica


Direção: Camila Bauer

Tradução: Giovana Soar Elenco: Fabiane Severo, Guilherme Ferrêra, Henrique Gonçalves e Laura Hickmann Direção coreográfica: Carlota Albuquerque Composição e desenho sonoro: Álvaro RosaCosta Preparação vocal: Luciana Kiefer Cenografia: Elcio Rossini Figurino: Daniel Lion Iluminação: Luiz Acosta e Thais Andrade Maquiagem: Luana Zinn Criação e confecção de máscara: Diego Steffani Identidade visual: Jéssica Barbosa

Realização: Projeto Gompa e Rococó Produções Apoio Institucional: Aliança Francesa Apoio: Centro Cultural CEEE Erico Veríssimo, Natureza Restaurante Vegetariano e Departamento de Arte Dramática da UFRGS


Arquivo
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