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Destaques

FARINHA COM AÇÚCAR – A ARTE NECESSÁRIA

Por Marco Vasques e Rubens da Cunha

Apagamento e silenciamento são termos que acompanham a história das pessoas negras nos últimos séculos, sobretudo nesta parte mais ao ocidente do mundo. Primeiro, o apagamento e o silenciamento se estabeleceram pela normatização da escravidão, depois pela normatização do segregacionismo, do apartheid, das pseudoabolições e, mais por agora, apagamento e silenciamento permanecem imiscuídos no racismo implícito e explícito, nos olhares atravessados, nas estatísticas aterradoras da desigualdade social, da violência nas periferias, dos mortos e presos pelo Estado, nas não notícias que envolvem, por exemplo, os ataques terroristas na Somália.

Evidentemente, a luta do movimento negro conseguiu abrir brechas, espaços, gritos e traços que, se ainda não destruíram o apagamento e o silenciamento, pelo menos estão abalando certezas, causando tremores nas estruturas. A luta é longa e contínua, e a arte produzida por negros e negras é uma das suas grandes armas. Obviamente, todo o sistema canônico também resiste a essa revolução, mas de resistência a arte negra sabe muito mais e, pelas margens, pelos cantos, pelos fundos, ela vai corroendo, entrando, transformando tudo. E assim se desvela, se impõe e exige o lugar que lhe é de direito, o lugar da equivalência, para usarmos um termo caro ao pensamento de Beatriz Preciado.

Foto: Diogo Gonçalves de Andrade


O Teatro Álvaro de Carvalho recebeu, nos dias 13 e 14 de outubro, a abertura do terceiro BQ(en)cena. Farinha com Açúcar ou Sobre a Sustança de Meninos e Homens, do Coletivo Negro, de São Paulo, foi o espetáculo escolhido para dar arrancada à temporada de teatro que se estenderá até 2019 com a apresentação de diversos grupos do Brasil.

Em um momento no qual passamos por tantos absurdos e tantas usurpações, e a arte por tantos ataques, a opção por trazer o coletivo à Florianópolis foi uma decisão que deve ser aplaudida. Tendo por base as letras do grupo de rap Racionais MC’s e o depoimento de 12 homens negros que vivem em condições vulneráveis e ritos diversos de matrizes africanas, o trabalho é um acontecimento cênico provocativo e um protesto estético de grandeza maior. Transita entre a música, a performance, o teatro, a dança e o ritual. São muitas as referências históricas, estéticas, poéticas e políticas que atravessam Farinha com Açúcar. As linguagens híbridas e a técnica da colagem norteiam a montagem.

A mistura, já apresentada no título, poderia ser catastrófica pela complexidade e diversidade de elementos unidos à cena. No entanto, equilibrar a dose de farinha e de açúcar é uma técnica que se aprende na infância. E se os homens entrevistados pelo Coletivo Negro são adultos, o espetáculo não estaciona neste lugar. São muitos os corpos apresentados: o corpo agredido pela figura masculina paterna, o corpo violado pelo preconceito, o corpo abatido pela polícia, o corpo esgarçado pelos dispositivos burocráticos, o corpo sem a possibilidade de ser corpo e, também, o corpo marcado pela invisibilidade e por violências múltiplas.

Foto: Diogo Gonçalves de Andrade


Jé Oliveira comanda o ritmo acompanhado pelas mãos do DJ Tano (Z’África Brasil), que compõe o elenco ao lado de Cássio Martins (baixo), Djy Wojtila, Fernando Alabê (percussão e bateria), Mauá Martins (pianos e MPC) e Melvin Santhana (guitarras, violão e voz). Três planos se insinuam para o espectador: ao fundo, uma favela; no centro do palco, a banda; e na boca de cena, um cemitério evocando a violência diária sofrida por jovens e homens negros Brasil afora.

Em um país no qual a maioria da população é negra, não se precisa de muito esforço para entender o tamanho da exclusão a ela imposta. Basta o teste do pescoço: entre nos melhores restaurantes do centro de Florianópolis ou de qualquer outra cidade, vire o pescoço e veja quantos negros estão sentados comendo e quantos estão servindo. Faça isso. O resultado é assustador. O mesmo ocorre nas universidades, entre em qualquer universidade, dê aquela viradinha no pescoço e veja quantos negros são professores, estudantes e quantos estão varrendo o corredor ou limpando os banheiros. Farinha com Açúcar não é um espetáculo somente sobre a violência policial ou sobre o extermínio do corpo negro. É sobre toda força de violência, da mais gritante à mais banal; por isso se faz necessário exaltar a volta de Zumbi.

O filósofo Achille Mbembe, em Crítica da razão negra, afirma que existe apenas um mundo, e esse mundo é tudo o que temos, e o que temos em comum é o desejo de sermos seres humanos mais completos, cada um à sua maneira. Mas para que isso aconteça, é preciso “restituir àquele e àquelas que passaram por processos de abstração e de coisificação na história, a parte da humanidade que lhes foi roubada”. Assim, reparação é mais do que uma categoria econômica, mas uma reunião de partes que foram amputadas, uma restauração de laços rompidos, sem os quais, segundo o filósofo, não é possível o jogo da reciprocidade, sem ele não podemos atingir a humanidade.

Dessa forma, restituição e reparação estão “no centro da própria possibilidade da construção de uma consciência comum do mundo”. Assim, continuando por essa linha de raciocínio, Mbembe afirma que a ética da restituição e da reparação implica o reconhecimento daquilo que podemos chamar a parte do outro, que não é a nossa, mas da qual somos a garantia, quer queiramos ou não. Ora, o apagamento e o silenciamento são estruturas que negam justamente essa ética da restituição e da reparação.

E é nesse embate que entra a arte negra, não apenas como panfleto ou engajamento, mas como força estética capaz de alterar o estado violento a que pessoas negras são submetidas. Quando a música “Ela Partiu”, do Tim Maia, ganha corpo e voz no palco, o público entende de pronto o diálogo, a inteligência e dimensão de urgência que Jé Oliveira e seus atores-músicos impõem à canção. O público não apenas entende a explícita referência ao assassinato de nossos dias e ao extermínio do estado democrático de direito, mas abre a cena para aplaudir, para partilhar e viver o ato em curso proposto pelo espetáculo Farinha com Açúcar ou Sobre a Sustança de Meninos e Homens.

Foto: Diogo Gonçalves de Andrade


Afinal, o que esse espetáculo nos diz? Diz que em um país com tamanha desigualdade; em um país com tanto preconceito arraigado; em um país no qual predomina uma elite predadora e funesta; em um país no qual as relações, em praticamente todos os setores, são verticalizadas; em um país no qual se defende escola sem partido; em um país no qual saúde e educação de qualidade são reguladas pelo capital; em um país no qual ter uma casa própria é sonho de existência e não direito; em um país no qual as pessoas se preocupam em demasia com o sexo e a religião alheia; em um país no qual as relações, inclusive as amorosas, são tencionadas pelo poder e pelo dinheiro; em um país no qual jovens pobres e negros são assassinados todos os dias; em um país no qual mais de 4 mil mulheres são assassinadas por ano; em um país no qual ter orientação sexual diversa gera inúmeros tipos de violência; em um país no qual a arte é tratada como coisa supérflua; em um país no qual artista é estigmatizado de vagabundo; em um país no qual todas as convenções legais são burladas por quem deveria proteger tais convenções; em um país no qual um professor ganha 10 vezes menos que um político; enfim, Farinha com Açúcar nos diz, parodiando os Racionais MC’s, que não há paz para quem vive na guerra, para quem sofre um terrorismo real e institucionalizado.

Aimé Césaire, em seu Discurso sobre o Colonialismo, afirma que “entre o colonizador e o colonizado só há lugar para o trabalho forçado, para a intimidação, para a pressão, para a polícia, para o tributo, para o roubo, para a violação, para a cultura imposta, para o desprezo, para a desconfiança, para o silêncio dos cemitérios, para a presunção, para a grosseria, para as elites descerebradas, para as massas envilecidas”. Farinha com Açúcar lembra tudo isso, ao relatar a vivência diária nas periferias brasileiras. E faz com arte e pensamento. Porque não há no trabalho uma visão personificada de todas essas mazelas e muito menos uma culpa individualizada. Farinha com Açúcar ou Sobre a Sustança de Meninos e Homens é um convite ao pensamento político, estético e ético. Atinge-nos profunda e cruelmente sem reproduzir a violência gratuita que coisifica o homem. Houve sim uma arritmia no Teatro de Álvaro de Carvalho: a ausência de público, um público que tem medo de arte, sobretudo se essa arte é arte negra.

Ficha Técnica

Idealização, Atuação, Direção Geral e Dramaturgia: Jé Oliveira

Banda: Cássio Martins (baixo, Dj Tano – Z’África Brasil (DJ residente), Djy Wojtila, Fernando Alabê (percussão e bateria) Mauá Martins (pianos e MPC), Melvin Santhana (guitarras, violão e voz).

Direção Musical: Fernando Alabê e Jé Oliveira

Arranjos e Paisagens Sonoras: Fernando Alabê, Jé Oliveira, Mauá Martins e Melvin Santhana.

Cenografia e Objetos: Júlio Dojcsar – casadalapa

Figurino: Éder Lopes

Light Design e Operador: Camilo Bonfanti

Assistente e Operadora: Danielle Meireles

Design de Som e Operação: Glauber Coimbra

Seleção de Citações dos Racionais MC’s para Scratch: Jé Oliveira

Voz “Antiga” em off: Dona Gilda

Arte Gráfica: Murilo Thaveira - CasadaLapa

Fotos: André Murrer

Assessoria de Imprensa: Elcio Silva

Produção Geral: Jé Oliveira

Produção Executiva: Ana Flávia Rodrigues e Coletivo Negro


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