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Destaques

Why the horse? - Ode ao teatro e ao triunfo da vida

Por Marco Vasques e Rubens da Cunha


Por muito tempo e, porque não dizer, ainda hoje, a figura do ator em cena estava associada ao domínio de sua expressão corporal, sua habilidade vocal e à busca de uma construção de um personagem que estabelecia uma distinção inequívoca entre a representação e a vida. O teatro também foi usado como instrumento moralizador, como auxílio ao ensinamento do que é moralmente aceitável, permitido e desejável para que a sociedade mantivesse suas estruturas, suas máscaras e seus preconceitos. Houve um tempo em que teatro era sinônimo de dramaturgia que, por sua vez, era sinônimo de texto. Sim, houve um tempo em que existiu um purismo assertivo que impunha uma muralha estanque entre vida e arte.

O século XX foi prolífero em sistemas teóricos que discutiram estas questões e que ampliaram as possibilidades cênicas ao ponto de ser, hoje, impossível arregimentar verdades absolutas em termos de teatralidades. É nesta fronteira de impossibilidade que se localiza o espetáculo Why the horse? do grupo paulista Pândega de Teatro, que esteve, no mês de agosto, no tablado do Teatro Ademir Rosa, em Florianópolis (SC). Maria Alice Vergueiro dirige e também integra o elenco formado por Carolina Splendore, Luciano Chirolli, Robson Catalunha. Os atores são acompanhados por Sérvulo Augusto no piano. Why the horse? consiste, num só tempo, em um ato de recusa e um ato de domínio sobre a vida, a morte e a arte.

O ponto de arrancada do espetáculo é a busca da morte, mas a busca da morte no palco. Para isso, a dramaturgia, de Fábio Furtado, mergulha em poemas de Brecht e Hilda Hilst, por exemplo, e nas dramaturgias de Jodorowsky, Beckett e Arrabal. O cenário, uma espécie de arena em que o público se aloca, é um cemitério estético dos 50 anos de atuação de Maria Alice Vergueiro. São lápides em que estão inscritos nomes de atores, cenógrafos, dramaturgos e diretores que perpassaram pelas buscas da atriz. Com isso, nós ultrapassamos a linha de partícipes do espetáculo, somos lápides vivas, respirando o universo fantasmal e grotesco em que o trabalho finca suas referências. Esse universo é acentuado pelo tom surreal das imagens e pela sucessão de colagens que o elenco apresenta ao orquestrar a atriz Maria Alice Vergueiro, em sua cadeira de rodas, durante a travessia rumo ao desejo de encontrar um modo não apenas de vencer a morte, mas vencer as doenças e as limitações da velhice. Maria Alice Vergueiro também embaralha as fronteiras entre real e representação ao expor o seu corpo civil acometido por infecções hospitalares, por um acidente vascular cerebral e o mal de Parkinson. E nesse embaralhamento, a atriz e diretora confessou o desejo de encontrar a morte em cena num grande ritual de negação à morte, porque o que subjaz no réquiem-happening apresentado é o desejo de vida, desejo e direito de viver, a sua maneira, até a morte.

Em uma sociedade que mercantiliza tudo, inclusive a morte e a vida, e que tem por hábito impor o que o humano deve ou não deve fazer em suas etapas de vida, Why the horse? pode ser lido como um manifesto sarcástico e cáustico contra a pasteurização humana. Ainda que centrado na figura da atriz Maria Alice Vergueiro, é preciso ressaltar que o trabalho de elenco ultrapassa a ideia de apoio, pois Carolina Splendore, Luciano Chirolli, Robson Catalunha estão inteiros em cada cena, em cada passagem. Nos gestos/ações em que auxiliam Maria Alice Vergueiro percebe-se que a troca é prenhe de ternura, de entrega e ritmada por uma energia cúmplice que atinge o espectador de imediato. Além, é claro, de dar confiança para que Maria Alice Vergueiro vença o esquecimento do texto, a dificuldade de articular a voz e o corpo, as próteses nos joelhos, a artrose, e viva plenamente rumo à morte.

O que poderia, muito facilmente, virar lamento e pieguice, reverbera com rebeldia e coragem de enfrentar tanto o estar no mundo quanto a saída dele sem piedade. A ironia apresentada em Why the horse? perpassa a arte, os nossos sistemas de controle e se manifesta em liberdade plena, em rebeldia e recusa ao comum. Fragmentado por opção, a sutura dramática apresenta algumas cenas que merecem especial atenção. Uma delas é o momento em que Maria Alice Vergueiro fala ao público parte do poema "Da morte – odes mínimas”, de Hilda Hilst:


Se eu soubesse Teu nome verdadeiro Te tomaria Úmida, tênue E então descansarias. Se sussurrares Teu nome secreto Nos meus caminhos Entre a vida e o sono Te prometo, morte, A vida de um poeta. A minha: Palavras vivas, fogo, fonte. Se me tocares, Amantíssima, branda Como fui tocada pelos homens Ao invés de Morte Te chamo

Poesia Fogo, Fonte, Palavra viva Sorte.




Nesta cena, a atriz Carolina Splendore revela o poema aos ouvidos de Maria Alice, que repete ao público, verso a verso. A grandeza e a sensibilidade dessa cena é somada a outra cena em que Maria Alice pare Carolina numa dança que é um pouco uma fuga de cavalo louco e, com toda a sua ironia, balbucia ao público "sai, metáfora. É uma metáfora, estão vendo." Luciano Chirolli, companheiro de cena de Maria Alice Vergueiro há 23 anos, ao interpretar uma cena de Fim de Partida, de Samuel Beckett, num beijo sôfrego de amor e despedida, de desejo e desespero, afoga o espectador naquele mundo de solidão mútua, tão característico na obra do irlandês.

Tal qual As Três Velhas, montagem anterior do grupo, Why the horse? serve-se da teoria do pânico, criada e praticada por Jodorowsky, Arrabal e Torpor. Por isso cenário, figurino, iluminação e partituras cênicas são cadenciadas em diálogo com a música, as artes visuais e, sobretudo, um ritmo cinematográfico, tão explorado por Arrabal nos filmes Eu correrei como um cavalo louco, Fando e Lis, Viva a morte e A árvore de Guernica, que são referências declaradas e evidentes.

Como é de se presumir, o espetáculo termina com o velório de Maria Alice Vergueiro, com uso requintado da atmosfera grotesca, e mesmo surreal, que perpassa todo o espetáculo. O público fica atônito por também ter participado desta cruzada instável que o espetáculo propõe. Trata-se de uma obra de arte que é vida e obra, desejo de vida e de morte, que usa a linguagem cênica para criar uma teatralidade peculiar, que não permite o olhar viciado e soberbo de preconceitos, pois a vida, a vida exposta em sua inteireza, pode, muitas vezes, fazer a pretensa profundidade de algumas obras de arte se tornarem risíveis. Por tudo isso, é uma ode ao teatro e a uma vida toda dedicada a arte.

Em seu poema-conversa com a morte, Hilda Hilst, a certa altura diz provocativa: “perderás de mim / todas as horas / porque só me tomarás a uma determinada hora // E talvez venhas / num instante de vazio / e insipidez. / Imagina-te o que perderás / eu que vivi no vermelho / porque poeta, e caminhei / a chama dos caminhos.” Sob esse prisma, Why the horse? é, também, um manifesto que recusa a obediência e que na emulação entre a vida e a morte, propõe um triunfo à vida.


Ficha técnica:

Grupo Pândega de Teatro

Direção: Maria Alice Vergueiro

Dramaturgia: Fábio Furtado

Cenografia: J.C. Serroni

Desenho de Luz: Guilherme Bonfanti

Figurino: Telumi Hellen

Direção de Movimento: Alexandre Magno

Direção Musical: Otávio Ortega

Assistente de Direção: Pedro Monticelli

Elenco: Maria Alice Vergueiro, Luciano Chirolli, Carolina Splendore, Robson Catalunha. Música ao vivo: Sérvulo Augusto

Direção de Produção: Carla Estefan

Direção de Cena: Elisete Jeremias

Assistente de produção: Marita Prado e Paula Micchi

Camareira: Elisa Rosa

Operação de Luz: Marcela Katzin

Operação de Som e Cenotecnia: Edson Luna

Foto: Fábio Furtado


Foto: Fábio Furtado

Foto: Fábio Furtado

Foto: Fábio Furtado


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