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Destaques

Vaga carne: quando a voz ganha corpo

Por Marco Vasques e Rubens da Cunha

Atriz, diretora e dramaturga, Grace Passô é uma das principais vozes no teatro brasileiro atual. Trabalhou durante 10 anos com o grupo de teatro Espanca, período em que conseguiu grande destaque como dramaturga, diretora e atriz em peças como Por Elise e Congresso internacional do medo. Grace também é prolífera em realizar parcerias além dos já mencionados 10 anos de trabalho com o Grupo Espanca, de Belo Horizonte, ela se assoma a outros artistas e companhias teatrais. Como diretora esteve à frente de Contrações (Grupo3 de Teatro, SP), Carne Moída (com formandos da EAD/USP), Os Bem Intencionados (Grupo LUME/SP) e SARABANDA, em parceria com Ricardo Alves Jr.; como atriz esteve presente em Rasante (No Ar Companhia de Dança) e KRUM (Companhia Brasileiro de Teatro). Atualmente, está em cartaz com Vaga carne, seu primeiro solo, escrito e dirigido por ela. A personagem trazida à cena é uma voz que habita as coisas e que, num certo dia, resolve habitar uma mulher.

Segundo o professor português Moisés de Lemos Martins, “o atual e o contemporâneo explicam-se pela ideia de acontecimento”, não tanto o acontecimento como fato singular, sentido novo, único, mas como pensamento da diferença, em que há um horizonte “que aponta para o impuro do sentir, ou seja, para as experiências insólitas, perturbadoras, ambivalentes, excessivas, irredutíveis sem dúvida ao princípio da identidade, e que constituem a experiência da nossa contemporaneidade.” Grace Passô não é apenas uma atriz em cena, mas um acontecimento. No caso, um acontecimento que dá voz a uma voz que se amplifica e se embeleza a cada descoberta em que se revelam as experiências perturbadoras tais como o machismo, o racismo, mas também experiências insólitas em que a voz se descobre vísceras, pulmões, coração e descobre-se, por fim, linguagem que só acontece porque acontece no corpo dessa mulher.

É o corpo de Grace Passô que serve de morada a essa voz. Em cena, a atriz vai se camaleando, dando espaço à curiosidade, ao frêmito, ao tédio, à alegria desse ser que já esteve em tantas coisas e que, agora, entra nesse outro mistério animado, vivo, quente que é um corpo feminino. Essa visita é revelada não apenas no texto ora falado, ora gritado, ora sussurrado, mas também no próprio corpo da atriz que gesticula as sensações.

Há, em Vaga carne, uma simbiose intensa entre corpo e voz, mesmo que a voz seja a protagonista, seja ela a dona da cena, é da sua condição se corporificar. Podemos aqui pensar também nas sete teses desenvolvidas por Paul Zumthor, em seu livro Performance, recepção e leitura, nas quais a “voz é o lugar simbólico por excelência”; “a voz (…) estabelece ou reestabelece uma relação de alteridade, a voz funda a palavra do sujeito”; “todo objeto adquire uma dimensão simbólica quando é vocalizado”, “a voz é uma subversão, ou uma ruptura da clausura do corpo”; “a voz não é especular, a voz não tem espelho”; “escutar um outro é ouvir, no silêncio de si mesmo, sua voz que vem de outra parte.” De uma maneira ou outra, Vaga Carne toca essas teses de Zumthor, mas destacamos aqui a tese de que a voz é uma subversão, uma ruptura da clausura do corpo. No entanto, para Zumthor, a voz atravessa o corpo sem rompê-lo, é como se a voz desalojasse o homem de seu corpo. Em Vaga carne a relação parece ser outra, a voz é uma visitadora, uma invasora curiosa, que se apropria do corpo para poder existir, não para rupturá-lo. Assim, quando descreve de forma tão intensa o que é estar dentro daquele corpo de mulher, a voz desaloja-se de si mesma, e passa a ser uma portadora e porta-voz de todas as comiserações que aquela mulher possui e talvez nunca tenha externado pela fala, pela voz. O corpo, que no começo parecia um “cavalo”, um recebedor de espíritos, é ele um transformador da voz.

Vaga carne ganha a força do hibridismo: a voz ainda é essa persona vagante, conhecedora de inúmeros corpos animados e inanimados e que agora está vagando dentro de um corpo de mulher. Por outro lado, a mulher tem memórias, sonhos, desejos; ela é um estar-no-mundo, a mulher é também um acontecimento. A voz vai se imiscuindo na mulher e a mulher vai se confirmando pela voz e, assim, outra das teses de Zumthor se vivifica nesse espetáculo: a de que “escutar um outro é ouvir, no silêncio de si mesmo, sua voz que vem de outra parte. ”

Tal processo é uma das leituras possíveis advindas dessa peça. Há outros caminhos reflexivos a que somos convidados por Grace Passô, pois Vaga carne é uma peça repleta de camadas, de dobras, de entradas e saídas. Um espetáculo potente, grave, cheio de melodia e variações. Assim é a voz, tanto o personagem, quanto a voz mesma de Grace. Se para o professor Moisés o atual e o contemporâneo se associam ao conceito de acontecimento, vale lembrar que Giorgo Agamben conceitua o contemporâneo no âmbito do intempestivo, sendo assim, hibridamos ambos os teóricos para achar uma noção conceitual que possa definir um pouco da atriz Grace Passô: ela é, também, um acontecimento intempestivo.



Foto: Marília Araújo

Foto: Kelly Knevels

FICHA TÉCNICA

Direção, texto e atuação: Grace Passô

Interlocutores: Ricardo Alves Jr. e Kenia Dias.

Iluminação: Nadja Naira

Operação de luz: Edmar Pinto

Produção: Nina Bittencourt

Fotografia: Lucas Ávila.

Identidade Visual: 45 Jujubas.

Classificação indicativa: Livre

Duração: 60 minutos


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