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Destaques

Visagem - a simplicidade radical

Por Marco Vasques e Rubens da Cunha

Qual a diferença entre visagem e miragem? A miragem é um fenômeno ótico causado pela refração da luz solar, já a visagem ultrapassa a natureza e chega ao sobrenatural. A visagem é amigada com fantasmas, com aparições assombrações. A visagem é bem mais apegada à poesia. A visagem é um acontecimento que pode não ser calcado na dita realidade, mas que está profundamente entranhada na realidade dos povos e comunidades nos interiores do Brasil. E é essa noção de visagem que dá título e sustenta o espetáculo da Cia. ContaCausos.

Tudo a que damos nome passa a existir, diz a atriz Josiane Geroldi a certa altura da peça. A afirmação está amparada no espectro cultural da oralidade dos caboclos do oeste catarinense; ela se ancora nas falas, invenções, crenças, nos ritos e mitos da gente simples do chão, da gente de coração e alma crédulos, para daí construir sua linguagem, sua forma de expressão. Eugènio Ionesco diz que “uma linguagem é um pensamento”. O primeiro mérito de Visagem, que esteve em cartaz no último final de semana, na Casa Vermelha, centro de Florianópolis, é o de se constituir num pensamento completo, num pensamento orgânico que se materializa em linguagem cênica.

A Cia. ContaCausos, de Chapecó, vem pesquisando a cultura oral cabocla do sul do Brasil desde de 2008. Daí surge Visagem, que tem uma estrutura bastante simples e inteligente. No palco, um abajur, uma vela, dois vestidos, um xale e uma banqueta que serão manipulados pela atriz Josiane Geroldi, estabelecendo uma conversa cúmplice com o espectador. Ela relata alguns causos: uma mulher que casa com um homem que se transforma em lobisomem; uma noiva que envelhece à espera de um noivo que morre tragicamente após uma queda de cavalo; um incrédulo que é perseguido pelo fantasma de um homem que morre afogado numa valeta após um porre.


Foto: Lucas da Cruz


Já de arrancada, como se pode observar, vê-se que todas as histórias têm um elo em comum, um recorte, ou seja, tratam da perda e estabelecem uma ligação entre mundo vivo, o dito mundo real, com o mundo dos mortos, o mundo que só podemos imaginar e fantasiar, isso se pensarmos dentro de um espectro racionalista, pois para muitos esse “outro lado” e suas manifestações são tão reais quanto este “lado de cá”.

Visagem narra a junção do mistério de estar vivo ao mistério que perpassa o estar morto, porque somos todos pertencentes a ambos os ambientes. A dramaturgia trabalha justamente no limite entre ficção e real. Embaralha e suaviza a fronteira entre realidade e invenção com uma costura que opta por misturar as narrativas. Além desta mistura, que é muito bem articulada, a dramaturgia ganha elementos importantes que reforçam a opção por navegar em sombras indecisas, tais como a iluminação que é manipulada pela atriz. Com apenas uma vela e um abajur, Josiane Geroldi consegue efeitos visuais poéticos e em pleno equilíbrio com sua trajetória corpóreo-verbal no palco. Somam-se ainda, como elementos importantes na dramaturgia, a música e a presença de áudio com a voz original dos caboclos narrando experiências, mitos e tradições.

Visagem é simples e radical ao mesmo tempo. Aqui pensando, como bem acentuou Karl Marx, que ser radical é ir às raízes. O que está em evidência no trabalho, para além da exuberância visual e do clima poético em que o público é inserido, é um mergulho profundo no mundo do qual o grupo se alimenta para construir sua poética. Ficam evidentes a noção de pertencimento, de respeito ao universo pesquisado e de uma imersão antropológica que tem por objetivo viver com o outro. Nada no trabalho soa como exótico, folclórico, estranho ou hierarquizado. Josiane Geroldi e a Cia. ContaCausos buscam nas suas raízes o que é mais terno, ou seja, compreender a poesia que atrevessa o mundo caboclo cortado de rudezas, de trabalhos manuais e de muitos abandonos.

Para contribuir na organização deste mundo de imaginação, visagem e mistério a Cia. ContaCausas convidou o diretor da Cia. Persona, Jefferson Bittencourt, que há anos vem se dedicando à pesquisa e à encenação de textos ligados à literatura fantástica. Nitidamente fincado em experiências com textos eruditos e clássicos (Franz Kafka, Edgar Allan Poe, H. P. Lovecraft, Horácio Quiroga), Bittencourt agora se encontra diante de um mundo oral/popular e com uma atriz/narradora disposta a se irmanar na poética pura, uma poética primeira do homem que carrega e alcança sua vivência e visão. O resultado é um trabalho de refinadíssimo apuro poético, com uma teatralidade peculiar, em que todos os elementos (direção, atuação, dramaturgia, cenografia, sonoplastia) são organizados com inteligência. Visagem consegue ser um espetáculo que traz o que há de mais ingênuo e de mais profundo no mundo do homem caboclo e sua relação com a natureza humana e com a terra, que é seu horizonte de vivência, e, ao mesmo tempo, revelar-se como um trabalho erudito, que escapa das pirotecnias e abusos de linguagens desnecessários, ganhando, assim, sua força estrutural e poética.



Foto: Lucas da Cruz

Foto: Lucas da Cruz

Ficha Técnica

Direção: Jefferson Bittencourt

Concepção de Luz: Jefferson Bittencourt

Trilha Sonora: Jefferson Bittencourt

Música “Essa Menina”: Paulo Freire

Dramaturgia: Jefferson Bittencourt e Josiane Geroldi.

Pesquisa de Dramaturgia: Cia. ContaCausos

Tratamento de objetos de cena: Marcos Schuh

Figurino: Josiane Geroldi

Técnico de som: Lucas da Cruz


Arquivo
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