A força expandida e permeável de “Nós”
Por Marco Vasques e Rubens da Cunha
O Grupo Galpão tem mais de 30 anos de experiência teatral e, ao longo dessas três décadas, tem se estabelecido como um dos melhores grupos no cenário teatral brasileiro. Marcio Abreu, na última década, vem fazendo um trabalho de direção e dramaturgia que abriu algumas novas trincheiras no teatro feito no Brasil. A peça “Nós” é o resultado do encontro dessas duas potências criativas.
“Nós”, cuja dramaturgia é de Marcio Abreu e Eduardo Moreira, apresenta um breve fio narrativo em que amigos - ou uma família - se reúnem para fazer uma sopa. A partir disso, o que se tem são cenas que vão se fragmentando, acelerando, se caotizando até o limite máximo. Tudo para expor o estado profundo de angústia, medo, violência a que estamos submetidos nos tempos atuais.
Nas duas primeiras estrofes de “Nosso tempo”, Carlos Drummond de Andrade diz: “Esse é tempo de partido / tempo de homens partidos.// Em vão percorremos volumes / viajamos e nos colorimos. / A hora pressentida esmigalha-se em pó na rua. / Os homens pedem carne. Fogo. Sapatos. / As leis não bastam. Os lírios não nascem da lei. Meu nome é tumulto, e escreve-se na pedra.” É com o espírito de tumulto nesse tempo partido que “Nós” acontece. Em cena estão Antonio Edson, Chico Pelúcio, Eduardo Moreira, Júlio Maciel, Lydia Del Picchia, Paulo André e Teuda Bara. Pode-se dizer que o eixo central, a espinha dorsal é Teuda Bara. É seu personagem que não entende, mas que enfrenta, que move o caos instaurado pelos outros personagens. Sua voz ecoa, seja como uma matriarca sentada ao centro da mesa, seja na intensa nudez que revela seu corpo ao dizer e desdizer um poema.
Na sucessão das cenas apresentadas na peça, duas destacam-se por causa da violência física imposta aos atores, sobretudo à Teuda Bara: a primeira trata-se de uma expulsão da cena, do poder, da vida. A personagem se recusa e é terminantemente expulsa do palco. A analogia com a atual situação política é explícita. Num outro momento, a personagem de Teuda Bara é obrigada a ficar em cena. São retirados os seus desejos e vontades de sair, de fugir. Ela é obrigada a permanecer.
Foto de Guto Muniz
A solução encontrada por Marcio Abreu para as duas cenas é agoniante, e, apesar da técnica dos atores, fica-se com a sensação de que a violência extrapolou a representação, ou seja, é violência viva e presentificada. Além disso, há várias outras cenas em que a técnica dos atores é responsável pela exacerbação tanto do texto, repetido, fragmentado, cuspido feito faca, quanto da ação que segue, montanha-russa, entre a calma e o desespero, entre o carinho e a porrada. As camadas de leitura dessa peça são inúmeras, podem ir de uma esfera ampla e até óbvia da questão política atual, a uma esfera mais íntima, relacionada diretamente a vida em grupo, sobretudo, uma trupe, uma república teatral como é o Galpão. Pode-se ir do caos institucional e político pelos quais passamos às mais ínfimas explosões cotidianas ao se tentar precisar uma interpretação ao espetáculo.
“Nós” apresenta um texto urgente, preciso, que traz informações atuais sobre violência e migração, é coloquial, beira o absurdo, instaura-se no poético, resgata a canção “Balada do lado sem luz” de Gilberto Gil e um poema de Wislawa Szymborska. Ou seja, é um texto fortemente contemporâneo, intertextual, paradoxal em seus entremeios. A direção de Marcio Abreu optou por colocar a trupe do Galpão num terreno vizinho àquele que lhes é comum: o farsesco, o clown, o humor popular e físico estão lá, mas transpostos em outra chave, menos visível, talvez menos Galpão e mais Marcio Abreu.
Foto de Guto Muniz
Não há dúvidas que se embrenhar numa seara como essa garante ao Galpão um status de ousadia estética e criativa como poucos grupos podem possuir. Chama atenção também o despojamento dos figurinos e da maquiagem. Há uma cara limpa, um corpo limpo nessa peça. Algo muito mais propício para que os atores possam receber os diversos impactos que compõem “Nós”: o texto, a violência cênica, o afastamento das zonas de conforto, a estupefação do público. Impactos que se condensam no final, numa festa catártica e dionisíaca, da qual somos todos convidados a participar, a dançar, a expulsar também nossos demônios e medos.
Somos todos a personagem de Teuda Bara, perguntando o que está acontecendo, o que os outros estão dizendo, fazendo afirmações de que a coisa não está fácil, criando e descriando o caos, querendo ficar e sendo expulsa, querendo partir e sendo obrigada a ficar. Somos todos esse paradoxo caótico e poético que apenas gente como Marcio Abreu e o Grupo Galpão são capazes de traduzir em teatro. Um texto fraturado, um verdadeiro caleidoscópio que apresenta muitas das nossas fissurar contemporâneas exige direção e atuações precisas, pelo constante risco de abismo. “Nós” carrega em si esta capacidade de organizar o caos para, em seguida, desorganizar nossos poros e horizontes. “Nós” alcança a condição necessária a sua proposta em todos os seus elementos (direção, atuação, iluminação, dramaturgia) e apresenta um teatro de “permeabilidade”, um teatro “expandido” conceitos fundamentais para a trajetória do diretor Marcio Abreu.
Foto de Guto Muniz
FICHA TÉCNICA
ELENCO
Antonio Edson
Chico Pelúcio
Eduardo Moreira
Júlio Maciel
Lydia Del Picchia
Paulo André
Teuda Bara
EQUIPE
Direção: Marcio Abreu
Dramaturgia: Marcio Abreu e Eduardo Moreira
Cenografia: Play Arquitetura – Marcelo Alvarenga
Figurino: Paulo André
Iluminação: Nadja Naira
Trilha e Efeitos Sonoros: Felipe Storino
Assistência de Direção: Martim Dinis e Simone Ordones
Preparação musical e arranjos vocais/instrumentais: Ernani Maletta
Preparação vocal e direção de texto: Babaya
Colaboração artística: Nadja Naira e João Santos
Assistência de Figurino: Gilma Oliveira
Assistência de Cenografia: Thays Canuto
Cenotécnica e construção de objetos: Joaquim Pereira e Helvécio Izabel
Operação e assistência de luz: Rodrigo Marçal
Operação de som: Fábio Santos
Assistente técnico: William Teles
Assistente de produção: Cleo Magalhães
Confecção de figurino: Brenda Vaz
Técnica de Pilates: Waneska Torres
Fotos de divulgação: Guto Muniz
Registro e cobertura audiovisual: Alicate Conteúdo Audiovisual
Projeto gráfico: Lápis Raro
Design web: Laranjo Design – Igor Laranjo
Direção de produção: Gilma Oliveira
Produção executiva: Beatriz Radicchi
Produção: Grupo Galpão