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Destaques

Amadores: teatro que salva o coração

Por Marco Vasques e Rubens da Cunha

No livro Um sopro de vida (pulsações), escrito entre 1974 e 1977, Clarice Lispector afirma: “todo mundo que aprendeu a ler e escrever tem uma certa vontade de escrever. É legítimo: todo o ser tem algo a dizer. Mas é preciso mais do que vontade de escrever. Ângela diz, como milhares de pessoas dizem (e com razão) ‘minha vida é um verdadeiro romance, se eu escrevesse contando ninguém acreditaria’. E é verdade. A vida de cada pessoa é passível de um aprofundamento doloroso e a vida de cada pessoa é ‘inacreditável’. O que devem fazer essas pessoas? O que Ângela faz: escrever sem nenhum compromisso. Às vezes escrever uma só linha basta para salvar o próprio coração.”

Em 2007, o documentarista Eduardo Coutinho lançou Jogo de cena, um filme que transitava entre as fronteiras do real e do ficcional. Nesse filme, mulheres contam suas histórias, que depois são recontadas por atrizes. Ao fim, já não é mais possível perceber o que é depoimento, o que é invenção. Em Jogo de Cena, tudo pode ser verdade factual, como tudo pode ser pura criação literária, teatral. De qualquer forma, a premissa era a mesma de Clarice Lispector: falar uma só linha basta para salvar o próprio coração.


Foto: Ligia Jardim


Em 2016, a Cia Hiato estreou a peça Amadores em que atores de ofício e artistas amadores estão em cena. A Companhia publicou nos jornais um anúncio chamando pessoas interessadas em participar de uma peça. O primeiro passo foi ouvir as histórias pessoais dos interessados, bem como seus objetivos e desejos ao pisar no palco. Foram selecionados os tipos mais diversos, entre eles um ator pornô, uma dona de casa, um homem transgênero, um atendente de telemarketing bailarino, um imigrante africano, um boxeador.

De acordo com os idealizadores desse projeto, Amadores é “um relato poético, mas também um manifesto artístico. Uma galeria de retratos vivos. Um passeio por histórias e contextos que poderiam nos separar, mas que se aproximam em cena. Um evento que almeja o estabelecimento (ainda que só poético, porque tão distante da experiência real) de um palco sem divisões.”. Ou seja, quase duas dezenas de personagens em cena, vividos pelos amadores selecionados e pelos atores e atrizes da companhia, fazem um intercurso amplo e profundo pelas fronteiras entre o biográfico e o ficcional. Há largo histórico e indício, pensando aqui em Jacques Le Goff, de que o biográfico pode ser o sonho da carne ou mesmo invenção da memória-célula. Na medula de toda vida, a invenção é um sonho que pode ter sido abandonado, em outras palavras, a mentira {ficção} é a mãe da verdade {real}. Ainda que nada seja possível de verificação.

Mas, voltando a Amadores, é possível dizer que a peça em si tem uma estrutura simples: todos os atores ficam ao fundo da cena, e vem, um a um, contar sua história. Ora usam técnicas do stand up, ora encenam com a ajuda dos companheiros de cena alguns sketches. O que poderia ser um desfile de depoimentos piegas e artificiais, torna-se uma lista de falares profundamente humano, que traz à tona questões sobre gênero, raça, marginalização, machismo, homofobia e lutas de classes. Além disso, envolvendo tudo, como se fosse uma pele macia: a discussão sobre o próprio fazer teatral, as dimensões da arte, os limites da representação, da encenação, do que é ou não é teatro.


Foto: Ligia Jardim


Os ecos da fala de Clarice Lispector, bem como o experimento cinematográfico de Eduardo Coutinho, atravessam a peça inteiramente. A força dessa autoficção, ou dessa escrita de si, perpassa toda a estrutura e a alma de Amadores. É difícil ver uma experiência tão radical dar tão certo, sobretudo por apoiar-se amplamente em “não atores”. Afirmamos, sem medo de errarmos em nosso olhar, que o trabalho de curadoria da Cia. Hiato é o que mais chama a atenção, pois conseguiu antever histórias vivas de vi da e escolher pessoas aptas a contá-las. Além disso, as soluções dramatúrgicas, pensadas por Leonardo Moreira e pela Companhia, para resolver o número de pessoas em cena, bem como a não profissionalização de muitos, foi bastante inteligente porque optou pela mais certa das fórmulas: a simplicidade. Não há arroubos, excessos, estranhezas cênicas. Tudo o que é dado ao espectador é a voz, o corpo e a emoção dessas pessoas. Cada uma delas está ali revelando algo, revelando-se, mesmo que ficcionalmente. Cada uma dessas pessoas está ali para salvar o próprio coração, e por consequência para salvar o coração de quem lhes assiste. Outro ponto alto é o uso constante de referências pop, sobretudo do filme Rock, cuja história de superação se torna uma referência importante nos depoimentos. Além disso, nem tudo é essa entrega e força poética. Para equilibrar a sequência de depoimentos, há um personagem de um crítico amador de cinema que pontua todos os clichês e escolhas fáceis da dramaturgia. Assim, as histórias vão das mais simples até as mais trágicas, como a da mulher que teve inúmeras gravidezes interrompidas ou do ex-viciado em crack, mas sempre pontuadas pela ironia metalinguística do crítico amador.

A força de Amadores está em enfrentar de forma muito aberta o cinismo dominante. É uma peça que aposta na humanidade presente em cada pessoa, que aposta no enfrentamento e na superação das dificuldades. Isso tudo sem ser banal ou medíocre, mas fazendo um teatro ousado, diverso e ao mesmo tempo profundamente popular. Um teatro capaz de dialogar com qualquer tipo de pessoa, pois aquelas histórias apresentadas ali são as histórias de qualquer um de nós. Amadores é um espetáculo que salva não apenas o coração de quem assiste, mas o coração ancestral do teatro. Com todas as metáforas óbvias que a palavra “amador”, no plural, possa simbolizar, ela traz, no espetáculo, o limite da vida/experiência em cena. É com toda a carnação de vida que o cerne da cena se faz. Amadores é uma forma de vida-teatro/teatro-vida que salva, mas não salva pela crença, não salva por imposições de verdades, salva, apenas, a via possível da salvação de nossos corações.


Foto: Ligia Jardim

Ficha Técnica

AMADORES - Uma criação da Cia. Hiato com:

Aline Filócomo

Aura Cunha

Chicão Paraizo

Dalva Cardoso

Dom Lino

Fabi de Farias

Fernanda Stefanski

Giovanni Barontini

Leonardo Moreira

Loupan

Luciana Paes

Márcia Nishitani

Maria Amélia Farah

Marisa Bentivegna

Maurício Oliveira

Miguel Caldas

Nairim Bernardo

Nsona Kiaku Arão Isidoro Jorge

Oswaldo Righi

Paula Picarelli

Roberto Alves

Ronaldo de Morais

Rose Sforcin

Thiago Amaral

Yumi Ogino


Arquivo
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