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Destaques

Do humor, das viagens e dos caminhos em Egotrip

Por Marco Vasques e Rubens da Cunha

Egotrip, peça escrita e dirigida por João Sanches, é uma espécie de road-movie, ou road-play, cujo mote é inusitado: Rafael, um jovem publicitário de sucesso, noivo, filho de um português, descobre que um tio possui um anel de nobreza que seria seu por direito. Empenhado em reaver o anel, convida seus dois melhores amigos para uma rápida viagem a Morro do Chapéu, que fica na Chapada Diamantina. Logo no começo da viagem, envolvem-se num acidente no qual encontram um jovem desmemoriado; a partir disso, os quatro continuam a viagem, vivendo muitas confusões e aventuras. Aqui, essa breve paródia às clássicas chamadas da Sessão da Tarde não é gratuita, pois a peça pode nos relembrar de filmes clássicos como Conta Comigo, Os goonies, ou até mesmo Curtindo a vida adoidado, em que, sob a aparente simplicidade da trama, amigos vão se conhecendo e se fortalecendo para desafios vindouros. Essa peça-movimento tem um cenário fixo, pensado por Erick Saboya, Igor Souza e João Sanches, que é constituído de engradados de cerveja vivamente grafitados e que servem tanto de alusão aos bares, botecos e whiskerias comuns no interior quanto de espaço de intimidade para os amigos. A iluminação de Alexandre Moreira e João Sanches, acompanha a viagem adequando-se aos lugares em que os personagens passam, enquanto a trilha ao vivo, executada por Leonardo Bittencourt, acrescenta a jovialidade necessária à peça.


Foto: Sora Maia


Dorival Caymmi, numa de suas canções mais clássicas, afirma “a Bahia tem um jeito que nenhuma terra tem.” Uma das melhores características desse “jeito que nenhuma terra tem” é o humor, que na Bahia ganha espaço na musicalidade, na dicção toda malemolente, nas inúmeras expressões e gírias, num jeito de corpo composto de graça e ironia. E é esse humor presentificado no dia a dia do baiano um dos pilares sustentadores de Egotrip. O humor que João Sanches coloca na peça atravessa várias fronteiras, tocando a baixa e a alta comédia. Em determinados momentos, assume um tom farsesco, em outros, um tom tragicômico, tudo moldado por uma direção sóbria e pelas interpretações volumosas dos atores Alexandre Moreira, Igor Epifânio, Jarbas Oliver e Rafael Medrado. O adjetivo “volumosas” não é apenas no sentido qualitativo das interpretações cômicas, mas também no sentido quantitativo, porque os atores se desdobram em inúmeros personagens coadjuvantes que vão dando o tom viageiro do espetáculo.

O tom é rápido, afiado, pois esses amigos também concentram em si alguns estereótipos que, a princípio, os impediria de serem tão íntimos e embarcarem nessa viagem. No entanto, o texto de João e a qualidade dos atores conseguem trabalhar bem com os clichês: Jarbas, o dramaturgo marxista e heterossexual, posa de macho desconstruído; Alexandre, o gay liberal e individualista, serve como contraponto para as breves hipocrisias do amigo, enquanto tenta seduzir quem lhe aparece pela frente; por outro lado, cumprindo um papel mais complexo, está o motivador das ações: Rafael, publicitário rico, que se percebe despedindo-se de uma vida de solteiro para embarcar num casamento e nas responsabilidades profissionais cada vez mais sérias, por isso tão empenhado na viagem, nessa espécie de última aventura. Ligando essas personas, está Igor, um jovem desmemoriado, que aos poucos vai se descobrindo, ao mesmo tempo, em que descobre profundidades, contradições, intensidades em seus novos amigos. Nesse complexo e movimentado jogo, o humor se sedimenta tanto nas relações e alfinetadas dos amigos como na presença de uma série de coadjuvantes que demonstram as inúmeras facetas desse “jeito que nenhuma outra terra tem”.


Foto: Sora Maia


Outro ponto de sustentação da peça é essa duplicidade, ou dubiedade, da ideia de viagem ao ego, ou viagem ao interior. À medida que esses amigos saem da metrópole, da capital, e vão se embrenhando para dentro da Bahia, vão conhecendo o interior do estado, eles também vão conhecendo a si mesmos, vão viajando para outros interiores que não aqueles que levam à Chapada Diamantina. Bernardo Soares, um dos heterônimos de Fernando Pessoa, dizia que “para viajar basta existir”. O próprio viver já é uma viagem, no entanto, muitas vezes, a rotina e o cansaço nos embotam o olhar, nos amortecem os sentidos e é preciso uma viagem mais intensa ao interior para que possamos nos ver e nos reaver.

Esses quatro amigos estão na geração dos trinta anos, já não são mais jovens, irresponsáveis, já não possuem mais um corpo capaz de aguentar bebedeiras ou noites sem sono, mas ainda não conseguiram ser senhores sérios, pais de família, não conseguiram cumprir os papéis determinados aos homens de sua idade. Por isso, a busca de um anel de nobreza se faz uma aventura de transformação, de busca de si mesmo, uma egotrip em que mais do que conseguir uma joia, consegue-se viajar, consegue-se perceber aquilo que o poeta Antonio Machado nos diz ao explicar que “não há caminho, se faz caminho ao andar” e “e ao voltar a vista atrás, se vê a senda que nunca se há de voltar a pisar.”

É de perdas e ganhos que trata Egotrip. Com seu jeito de sessão da tarde, ela nos mostra as forças da amizade, os desencontros, as mentiras e as verdades a que temos que nos submeter à medida que envelhecemos. O humor serve de convite ao espectador para adentrar nessa viagem e reconhecer também suas alegrias, suas perdas, seus conflitos. Somos todos uma contínua egotrip. Podemos fazê-la densa, hermética, trágica, ou podemos fazê-la leve, divertida, amena como uma viagem inesperada entre amigos. Bernardo Soares novamente nos ensina: “A vida é o que fazemos dela. As viagens são os viajantes. O que vemos não é o que vemos, senão o que somos.” E o que somos melhora substancialmente depois que aceitamos convite de viajar nessa Egotrip.


Foto: Sora Maia


Ficha técnica de Egotrip

Texto e Encenação: João Sanches

Elenco: Alexandre Moreira, Igor Epifânio, Jarbas Oliver e Rafael Medrado

Trilha ao vivo: Leonardo Bittencourt

Cenário: Erick Saboya, Igor Souza e João Sanches


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