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Destaques

Por que os objetos sobrevivem às pessoas?

Por Marco Vasques e Rubens da Cunha

“Liuba – O que é que tem o nosso jardim”

(Tchékhov in O Jardim das Cerejeiras)

Já de arrancada, o cenário do espetáculo O Jardim, da Cia. Hiato, nos coloca em estado de fragilidade. Entramos numa espécie de arena em que a luta, o corpo a corpo da cena se descortina nos primeiros movimentos circulares do ator Thiago Amaral. Todo o ambiente cênico é construído a partir de caixas de papelão, que, aos poucos, vão revelando sua vocação polissêmica: a ruína de um casarão, baús em que guardamos o que queremos esquecer ou lembrar, casebres que se acumulam em nossas favelas, túmulos sobrepostos, enfim, são muitas as tonalidades simbólicas que vão se desnudando quando da tomada do espaço pelos atores.


Foto: Ligia Jardim


Assim que o público se assenta, os atores manipulam as estruturas de caixa de papelão e constroem três espaços cênicos, que terão partituras específicas. O espectador divide seu olhar em cada uma das três narrativas que serão encenadas, de forma circular, até que ele possa, aos poucos, fazer suas suturas, costuras e apropriações. Podemos pensar aqui na lógica do fragmento, de Walter Benjamin em que o particular não precisa concordar com o universal. Há sempre a descontinuidade, os espaços vazios que rompem o contínuo. O lado caleidoscópico da vida. Assim, somos invocados a mergulhar no nosso próprio jardim, na nossa própria vivência a partir da dramaturgia que se apropria do clássico O Jardim das Cerejeiras, de Tchékhov, e se mistura a narrativas experienciadas/inventadas pelos próprios atores. Os limites se rompem, nesse jardim sem início, apenas começos, apenas pedaços de memória, de sensações, de perdas, memórias acontecidas ou inventadas.

Leonardo Moreira, que assina a dramaturgia e a direção do trabalho, manejou com maestria as incidências do texto do autor russo e constrói uma escritura permeada pela memória, ausência, falência, propriedade, morte, afogamento, tempo, objeto e abandono; todos os elementos presentes em O Jardim das Cerejeiras são reordenados a partir das memórias dos atores. Todo esse trabalho de dramaturgia leva em consideração, também, as memórias e as vivências do espectador, que é evocado a atuar, ainda que tente resistir. Não é possível sair de O Jardim ileso, sem fissuras, fraturas. O público, no jogo proposto pela Cia. Hiato, é convocado à jardinagem de forma delicada pelo tom confessional e pelo ritmo das atuações.


Foto: Otávio Dantas


Na apresentação ocorrida no Teatro Ademir Rosa, em Florianópolis, foi possível encontrar, após o espetáculo, três espécies de reação-impacto nos espectadores: alguns com as lágrimas controladas, reservadas, meio que dizendo “esta também é a minha vida, esta também é a minha história, reconheço-me em muito do que vejo”; outros, em menor número, em choro desesperado meio que dizendo “esta é a minha história e estou atormentado, reconheço-me no que vejo, mas estou impossibilitado de sentidos”; e, por fim, a turma que engoliu a sensibilidade, atônita, e emudeceu de espanto. Sim, O Jardim é um espetáculo da ordem do espanto, da ordem da desordem interna. Foi feito para desossar o espectador. E, nisso, conecta-se muito com o outro espetáculo do grupo, Amadores, no qual um grupo de “não-atores” foi selecionado para atuar junto com os atores da companhia. Cada um revelava traços, pedaços, fragmentos de sua biografia.

E neste desossar, os atores Aline Filócomo, Fernada Stefanski, Luciana Paes, Mariah Amélia, Paula Picarelli, Thiago Amaral e o ator convidado Edison Simão se desdobram e apresentam o mesmo trabalho três vezes, para três públicos distintos com reações igualmente diferentes. Temos duas irmãs que comemoram o aniversário do patriarca com Alzheimer, num clima de festa e acusação, num clima de deboche e delicadeza. O pai, após o encontro, será enviado a uma instituição para idosos; estamos no final da década de 1970. Uma mulher e sua empregada se despedem da casa abandonada, o jardim ruído, agora ocupado por terceiros, por estranhos. Estamos em 2011. Um casal acaba de se separar e faz divisão dos seus pertences, passando por idílio, rancores, dores rememoradas e pedaços de esperanças. Todas estas narrativas podem ser tomadas individualmente, mas em sua circularidade, compõem a saga familiar, não de uma família em específico, embora seja possível ler o trabalho a partir dessa perspectiva, mas o que ressoa da poética de O Jardim é a capacidade de universalizar o registro cênico a ponto de nos encontramos com nossa jardinagem interna em cada um dos três atos.


Foto: Otávio Dantas


É do esmaecimento do tempo e da vida presente que O Jardim nos aproxima. É nas docilidades e nas asperezas que somos imersos. Se a memória, como quer Hume, não tem a ver somente com o passado, mas também com a identidade e com a ideia de se persistir no futuro, o quanto do passado nos é presença? O que guardamos nos nossos jardins? O que enterramos? Quais lembranças se tornam pedaço de nossa vivência? Que fotografia não rasgar da memória? Que lembrança cultivar? É nos ritos de permanência, passagem e memória que a bússola de O Jardim aponta, nunca estancada, porque ancorada em nossa experiência individual, afetiva, mas também coletiva e social.

Em um determinado momento do espetáculo, uma das atrizes diz “porque os objetos sobrevivem às pessoas?”. Nesta frase aparentemente simples reside muito da universalidade que perpassa o espetáculo, pois todos, sem exceção, já nos debatemos com aquele vestido florido dependurado em um guarda-roupa vazio, com aquela fotografia em que um dos presentes vive apenas na memória, com a lembrança daquela voz que apenas nossos ouvidos podem reconhecer, enfim, O Jardim é ao mesmo tempo carinho e desespero, comunhão e desejo de poesia, mas sempre navalhado por uma lâmina de alumínio, que esfria todas as memórias. Porque são nas desgraças e nas delicadezas que nos tornamos realmente iguais. Liuba, uma das personagens de O Jardim das Cerejeiras, resume: “Imagino – quando você acha graça... Vocês não deviam ir ao teatro ver a vida dos outros – deviam aproveitar melhor o tempo observando mais a sua própria vida.” O espetáculo O Jardim, da Cia. Hiato, ou melhor, todos os trabalhos da Cia. Hiato, nos fazem mergulhar mais em nossa própria vida.




FICHA TÉCNICA

O Jardim

Criação da Cia. Hiato

Dramaturgia e Direção: Leonardo Moreira

Elenco: Aline Filócomo, Fernanda Stefanski, Luciana Paes, Maria Amélia Farah, Paula Picarelli, Thiago Amaral Ator Convidado: Edison Simão

Coordenadora de Produção/Gestão: Aura Cunha

Assistência de Direção: Amanda Lyra

Cenário: Marisa Bentivegna

Assistente de Cenografia: Ayelén Gastaldi e Cezar Renzi

Desenho de Luz: Marisa Bentivegna

Música Original: Marcelo Pellegrini

Figurinos: Theodoro Cochrane

Objetos Cênicos: Victor Merseguel

Efeitos Especiais: Pepe Scrofft

Fotos e vídeos: Otávio Dantas

Criação Gráfica: Cassiano Tosta - DGRAUS

Produção executiva: Yumi Ogino

Produção Geral: Elephante Produções Artísticas


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