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Destaques

Diz que sim: a derrisão violenta

Por Marco Vasques e Rubens da Cunha

Berltot Brecht, em alguns de seus escritos, sobretudo no Pequeno Ornagon Para o Teatro, de 1948, tido como seu último texto teórico, apresenta uma infinidade de pistas e questões para nortear o entendimento de suas ideias e práticas teatrais. Observações sobre as raízes do distanciamento na tradição teatral, questões de moral e estética, a importância da fábula no processo de criação, ciência e arte e sobre a importância da diversão na prática cênica são desenvolvidas labirinticamente num fluxo que exige do leitor idas e vindas aos setenta e sete apotegmas que constituem o texto.


Foto: Camila Petersen


O coletivo Baal, após montagem de “Baden-Baden”, realizada em 2011, volta à cena com o espetáculo “Diz que sim”, inspirado na peça didática “Aquele que diz sim”, escrita por Brecht tendo como colaboradores Kurt Weill e Elisabeth Hauptmann. Escritura que, por sua vez, também foi baseada numa adaptação inglesa, feita por Arthur Waley, do Nô japonês “Taniko”. Só aqui já teríamos infindáveis possibilidades de discussão sobre a genealogia do texto e seus personagens, além de todo um campo complexo de inter e transculturalidade.

A montagem da trupe Baal, capitaneada pelo pesquisador e diretor Vicente Concílio, que teve temporada recente no Teatro SESC Prainha, traz à cena, com exímia competência, uma nova adaptação da obra. São muitas as surpresas que advêm de “Diz que sim”: as atuações de Beatriz Cripaldi, Gabriela Drehmer, Juliana Riechel, Julia Weiss, Luana Leite, Thaís Carli denotam um grupo em sintonia afetiva e que aprofunda a investigação de sua linguagem; a nova tessitura da dramaturgia textual, que traz canções compostas pelo coletivo; a conexão da montagem com os dias difíceis pelos quais todos passamos; as direções musicais e cênicas e o tom universal que a montagem alcança perpassada por uma poética nitidamente latina apresentada nos figurinos, canções e nos gestos dos atores são apenas algumas das qualidades que atravessam a montagem “Diz que sim”. Esse último aspecto aponta como o diretor conseguiu adaptar os aspectos interculturais da peça. A latinidade surge como um elemento a mais, um toque pessoal da trupe, na mistura original.


Foto: Camila Petersen


A fábula é mais ou menos conhecida: um menino decide viajar à procura de remédio que possa curar sua mãe doente. No trajeto, adoece e se torna um estorvo à travessia. A decisão de abandoná-lo surge e o fenecimento se torna inevitável. A narrativa é conduzida pelo professor e seu ajudante, personagens que ganham significações múltiplas, num namoro frutífero entre a tradição da Comédia Dell’Arte, o universo circense e os clichês cênicos que pululam nos palcos, na vida, na política, na arte e nos meios de comunicação.

É necessário assinalar que os clichês são emparedados pela dimensão de leveza e alegria que o espetáculo apresenta. São, em verdade, chicoteados por um riso que ganha a dimensão de alegrar e violar o espectador. “Diz que sim” pode ser alçado ao conceito de derrisão violenta porque embora de dimensão solar em suas opções cênicas cadencia o humor com ritmos que atropelam, que fraturam, que rompem a diversão, concretizando verdadeiras cisões. O trabalho embaralha e distorce a visão binária do mundo, apresentando um lugar em que a arte exposta no palco seja pensamento sobre o mundo. Na urdidura desse pensamento reside outro ponto importante de “Diz que sim” que é levar em consideração o jogo entre atores e espectadores, jogo que não namora com a empatia arrebatadora ou a identificação com a narrativa. O que ocorre no trabalho é uma espécie manipulação que as atrizes tem do olhar do outro. Há um caminho evidente a ser percorrido, mas o caminho é o pretexto para que as atrizes revelem os acidentes, as fissuras desse caminhar, por isso muitos caminhos são expostos.

Outro ponto de enorme relevância no trabalho é o modo como o grupo se apropria da linguagem cômica, porque amplia a noção de diversão, conceito tão importante para Brecht. Divertir, do latim, divertere, tem algumas acepções, tais como: distanciar-se, afastar-se, separa-se de e divorciar-se que nos faz entender porque o termo ganha tônus nas procuras de Brecht. E é no jogo derrisório que o espetáculo atinge o espectador com violência e leveza ao mesmo tempo. O paradoxo persiste durante toda a encenação, pois a narrativa original, que possui uma atmosfera de alto potencial trágico, ganha movimentos solares e apresenta ironias com o tempo presente. Faz crítica acerba ao sistema político, educacional e, claro, de saúde pública.


Foto: Camila Petersen


Num breve texto intitulado “As cinco dificuldades para escrever a verdade”, Brecht enumera como dificuldades: a coragem de dizer e a inteligência de reconhecer a verdade. Além disso, existe a dificuldade de tornar a verdade manejável como uma arma e o discernimento suficiente para escolher o tom que torna a verdade eficaz e, por fim, a dificuldade de se ter a habilidade para difundir a verdade. Ao final do texto Brecht conclui: “Devemos resolver em conjunto, e ao mesmo tempo, estas cinco dificuldades, já que não podemos procurar a verdade sobre condições bárbaras sem pensar nos que sofrem essas condições e estão dispostos a utilizar esse conhecimento. Além disso, temos de pensar em apresentar-lhes a verdade sob uma forma susceptível de se transformar numa arma nas suas mãos, e simultaneamente com a astúcia suficiente para que a operação não seja descoberta e impedida pelo inimigo.” A atualidade da obra brechtiana está nesse enfrentamento cada vez mais urgente.

E ao que deveríamos dizer sim, afinal? Ao final cabe dizer sim à montagem de excelente esmero técnico e poético, com atuações capazes de espargir energias de variadas tonalidades e forças. Dizer sim ao enfrentamento que a montagem do Baal faz, enfrentamento mais que necessário em nossos dias. Resta-nos dizer sim a evidente cumplicidade do coletivo Baal, que neste segundo trabalho dá nítida demonstração de saber que a força política de um espetáculo pode ser erigida na lapidação de uma linguagem poética. Pode-se dizer que sim a evidente capacidade de Vicente Concílio de agregar um grupo que parece, ao que apresentou no palco, ter percebido, com profundidade, as preocupações apresentadas por Brecht, preocupações essas que pontuamos no primeiro parágrafo desse diálogo com “Diz que Sim”.

FICHA TÉCNICA

Atrizes:

Beatriz Cripaldi,

Gabriela Drehmer

Juliana Riechel

Julia Weiss

Luana Leite

Thaís Carli

Direção: Vicente Concilio

Direção e Concepção Musical: Zé Renato Mangaio

Codireção Musical: Fernando Bresolin

Figurino: Veridiana Piovezan

Modelagem e Costura: Ateliê da Harumi

Visagismo: Gabrielly Silva

Iluminação: Priscila Costa

Design Gráfico: Camila Petersen

Gravura: Ramon Rodrigues

Produção: Camila Petersen


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