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Destaques

A repetição amarga - o tempo dentro do tempo

Por Marco Vasques e Rubens da Cunha

O que se vê no início da cena, no germe da imagem, é uma tela, é um quadro que se movimenta em frente a uma multidão que ultrapassa 2.000 pessoas. Essa imagem, que ganha multiplicidade de significados por estar em um tempo e em um lugar circundado de água, é uma referência ao quadro “Os retirantes”, do pintor Candido Portinari, de 1944. Ela poderia, igualmente, nos conduzir à saga dos personagens do romance “Vidas Secas”, de Graciliano Ramos, publicado em 1938. No entanto, é 2017, e estamos em outro tempo, em outro lugar: o Anfiteatro Nelson Castro, Represa Municipal. É a abertura do Festival Internacional de Teatro de São José do Rio Preto com o espetáculo Suassuna – o auto do reino do sol. Uma trupe de circo-teatro viaja pelo sertão à procura da cidade de Taperoá e se envolve no confronto entre os Fortunatos e os Morais, entre a vida e a morte do amor de Lucas e Iracema. São os Quadernas, os Chicós, os Joãos Grilos. Mais que eles, são os retirados do mundo que esses mambembes musicais carregam nos corpos e nas canções. É, também, o trágico princípio do reino do sangue vai-e-volta presente nos sertões humanos do momento pelo qual atravessamos. E como é árida nossa travessia, árida como o sol espremido dentro do sol retumbando em escuridão e vertigem na partilha comum.


Foto: Ferdinando Ramos


Suassuna – o auto do reino do sol é um musical produzido pela Sarau Agência de Cultura e pela Companhia Barca dos Corações Partidos. Estreou no Rio de Janeiro em 15 de junho de 2017 e conta com canções de Chico César, que é também o responsável pela direção musical em parceria com Beto Lemos e Alfredo Del Penho. O texto é de Bráulio Tavares e a coordenação cênica é de Luiz Carlos Vasconcellos, ou seja, esses nomes possuem propriedade cultural, geográfica e artística para falar sobre um dos ícones da cultura nordestina: Ariano Suassuna. O trabalho se propõe como uma homenagem ao universo do escritor, que se separou dos seus personagens em 2014.

Dramaturgo, romancista, ensaísta, Suassuna tem uma galeria de personagens incrustados no imaginário popular, porque foi do imaginário popular que partiu para criar a sua obra, pois ele é um dos idealizadores do “Movimento Armorial”, que pretendia fazer uma arte brasileira erudita considerando as raízes populares da cultura. Assim, Suassuna segue a tradição de Molière e Shakespeare e parte do popular para construir suas obras, conforme revela: “Existem poetas de gênio, como Shakespeare, que criam suas obras a partir dos romances, baladas e contos populares (...). Mas existem outros, igualmente geniais, como Proust, que têm posição muito diferente. A escolha de um caminho ou de outro depende do gosto e da decisão de cada um de nós. De modo que, quando afirmo minha preferência por Cervantes, Molière, Manuel de Falla ou García Lorca, que partem do popular, não estou dizendo que somente essa linhagem é legítima, estou apenas afirmando que também ela é legítima.” É nessa tradição que Suassuna – o auto do reino do sol se ancora.


Foto: Ferdinando Ramos


A tessitura tramada para espetáculo cria labirintos, por meio de metonímias e de metáforas, que possibilitam ao espectador navegar de acordo com suas referências. Cervantes, Shakespeare, Calderón de la Barca se hibridizam ao cancioneiro popular, ao cordel e à alegria trágica do Agreste. Em uma primeira camada, o que se apresenta é o conflito amoroso, a disputa pela terra árida, a guerra política e a luta histórica contra o império do sol, sempre aprofundada pela dominação econômica e pela exploração sucessiva de oligarquias políticas sem fim. Em um outro plano, à medida que a viagem avança rumo a Taperoá, espécie de terra prometida, personagens como Hamlet, Dom Quixote, Romeu, Julieta vão surgindo em suas lutas contra o poder político, a concentração de renda, o latifúndio, a família tradicional e o patriarcado.

Os labirintos são operados de várias maneiras, no aspecto musical com a travessia entre vários gêneros, passando da ópera ao rock, da música pasteurizada à música popular. Na atuação, o universo circense, com sua característica ingenuidade pueril, emula os clichês novelescos tão característicos de nossa época. Todas essas operações são articuladas pelos atores em uma linguagem de risco, porque tangenciam o limite da pieguice e do óbvio, sem, no entanto, incorrer na pieguice e no óbvio.


Foto: Ferdinando Ramos


Suassuna – o auto do reino do sol foge da homenagem laudatória, do discurso didático, dos clichês biográficos e faz uma costura complexa entre as obras de Ariano Suassuna e suas principais influências. Tem um registro visual que dialoga com a solaridade sombria do universo que retrata, traduz as grandes questões presentes na obra do autor homenageado e apresenta uma execução musical de alto grau poético. No entanto, a concessão feita pela companhia de adaptar o trabalho a um espaço para o qual não foi pensado, somada ao seu pouquíssimo tempo de estreia, menos de um mês, revela algumas desconexões na sua cadência rítmica, além de recorrentes problemas na operação de luz.

Dois mil e dezessete. Ainda estamos mortificados em nossos desertos. Ainda temos que cantar sobre a música-muda que acorrenta a canção. Ainda temos que ser cada vez mais ingênuos e espertos, safos e líricos como as pessoas que vivem na obra de Suassuna e em Suassuna – o auto do reino do sol, espetáculo que nos mostra as mordaças do tempo dentro do tempo e suas cruezas. A sutileza da aparição de Ariano Suassuna em cena, de forma quase imperceptível, carregando um de seus personagens, indica um caminho: a arte existe para tornar o precário suportável e imprimir novas tonalidades ao sol. Como isso acontece? Não sabemos, só sabemos que é assim.

Ficha Técnica

Texto: Bráulio Tavares. Encenação: Luiz Carlos Vasconcelos. Música: Chico César, Beto Lemos e Alfredo Del-Penho. Figurinos: Kika Lopes. Cenário: Sérgio Marimba. Idealização: Andréa Alves. Produção: Sarau Agência. Com: Adrén Alves, Alfredo Del Penho, Beto Lemos, Fábio Enriquez, Eduardo Rios, Renato Luciano, Ricca Barros, Rebeca Jamir, Chris Mourão e Pedro Aune.

[O Caixa de Pont[o] - jornal brasileiro de teatro - foi convidado pela organização do Festival Internacional de Teatro de São José do Rio Preto para fazer parte do Painel Crítico, com objetivo de fazer a cobertura crítica do Festival]


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