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Destaques

As mortes antes da morte

Por Marco Vasques e Rubens da Cunha


Jean Genet é um escritor que testemunhou a necessidade da rebelião, da negação, testemunhou, inclusive, o fracasso da literatura, produzindo uma obra que nunca fracassou, porque feita com as bases da biografia, da dita realidade mastigada, triturada engolida e vomitada por esse rebelde. Preso, o ladrão e prostituto Genet escreveu As criadas com base em um crime cometido na cidade de Le Mans, no qual as irmãs Papin mataram e esquartejaram a patroa e a sua filha, no ano de 1933.

A peça estreou em 1947, causando um rebuliço considerável na cena francesa. Apesar de partir desse crime, a peça abarca não apenas mulheres que assassinaram a patroa, mas toda uma gama de excluídos, invisibilizados, massacrados que um dia escapam, gritam, explodem em violência, porque a morte antes da morte se torna insulto à existência. Obviamente, em se tratando de Genet, não temos nenhuma idealização dos excluídos, ninguém é visto como mártir da luta de classes e das injustiças sociais, mas o que se expõem são os párias, os malditos e amaldiçoados, os animalizados sem identidade alguma no escalonamento de valores sociais vigentes.


Foto: Jorge Etecheber


Mais uma vez, As Criadas volta à cena. Fruto de uma parceria entre Brasil e Polônia, o Teatro do Sesc de São José do Rio Preto recebeu a estreia internacional da nova montagem com direção do jovem artista polonês Radosław Rychcik. No elenco, as brasileiras Bete Coelho, Magali Biff e Denise Assunção. Rychcik dirigiu em 2016 uma exitosa montagem de Na solidão dos campos de algodão, de Bernard-Marie Koltès, o que já demonstra a linhagem da linguagem artística do diretor, que teve temporada no Rio de Janeiro. Agora, o diretor polonês encampa essa nova montagem, que além das atrizes brasileiras, conta com a colaboração de Michał Lis e Piotr Lis da banda The Natural Born Chillers, que criaram a música para a encenação. A cenografia e os figurinos ficam ao encargo da polonesa Hanna Maciąg.


Foto: Jorge Etecheber


Na montagem, esses seres animalizados e sem identidade sofrem, já no início do espetáculo, uma nova impressão, uma nova margem de significado, pois a atriz Denise Assunção entra no palco na condição de Madame e canta “O morro não tem vez”, de Tom Jobim. Denise canta como se houvesse uma gota de sangue em cada nota, um som de liberdade em cada silêncio. Essa indicação inicial vai nortear um diálogo constante que o trabalho estabelece com sismos sociais brasileiros: o preconceito racial, a misoginia, a dominação financeira, a divisão social dos bens e a concentração espúria do poder, sem, no entanto, perder a universalidade da violência proposta por Genet. Afinal, o jogo entre Claire, Solange e a Madame é uma mistura entre o real e o ficcional. Quem assassina quem? Quem está no comando? Quem está vivo e quem está morto? Quem está submetido a quem? O simulacro inicial das primeiras cenas, em que Claire, papel desempenhado pela atriz Bete Coelho, se apossa da condição de Madame e passa a tratar sua irmã, Solange, na atuação de Magali Biff, com o desprezo que recebe da sua patroa, é uma chave importante para se entender as partituras dramatúrgicas proposta pelo diretor polonês.

São três planos-partituras de acontecimentos instaurados. Ao fundo do palco, os músicos executam a dramaturgia musical. Em cena as atrizes Bete Coelho e Magali Biff travam uma luta verbal que varia entre o escárnio, o desprezo e o desejo carnal entre as irmãs. Acima da boca de cena, a transmissão ao vivo do confronto verbal se amplia e sugere, a todo momento, o combate físico, sempre perpassado pela ambiguidade complexa da relação da criadas-irmãs. Esses três planos, operados simultaneamente, se completam em um nível de teatralidade incomum, porque não se apartam, não competem e não se sobrepõem. Ao contrário, tal construção exige do espectador, em vários momentos, que faça uma opção, que escolha uma realidade para o seu olhar. Estamos diante de uma obra que revela a paradoxal força do fracasso, a paradoxal visibilidade daqueles que não são vistos. Esses paradoxos são expandidos em seus limites pelas atrizes Denise Assunção, Bete Coelho e Magali Biff.

Foto: Jorge Etecheber


Genet dizia que o “palco é um lugar vizinho da morte, no qual todas as liberdades são possíveis”[1]. E é nessa vizinhança, nessa fronteira de liberdades possíveis que se instauram essas criadas-criaturas. Michel Vinaver afirma que Jean Genet tem uma soberba habilidade lírica e que ele introduziu uma nova dramaturgia: a do cerimonial. Para Vinaver, nesta dramaturgia, ou nessa cerimônia, todas as relações humanas são falsas, não existira uma realidade, tudo é caricatura, simulacro. O teatro seria um mapa dessa caricatura. Além de mapa, o teatro de Genet celebra e exalta a caricatura, o simulacro. Não há interação entre os personagens, há apenas o encantamento entre diversas vozes. “Tudo se passa como se os personagens já estivessem mortos e atuassem as próprias vidas, uma vida reduzida a um ritual sem substância”, sentencia Vinaver[2].

E nessa aparente falta da intenção, nesse cerimonial, nesse encantamento entre as vozes, os sons e as imagens que se situa a complexidade cênica de As Criadas. O texto é proferido com enorme competência, mas em uma frequência e um ritmo de dimensões corpóreas. Voz, neste trabalho, se apresenta como corpo, um corpo estrangulado que quer explodir e implodir. As Criadas, na versão do polonês Radosław Rychcik, é um espetáculo de inteligências.

FICHA TÉCNICA

Autor: Jean Genet Direção e adaptação: Radosław Rychcik Tradução: Ricardo Frayha, Ricardo Lisias Música e vídeo: Michal Lis, Piotr Lis Cenografia e figurino: Hanna Maciag Iluminação: Caetano Vilela Elenco: Bete Coelho, Denise Assunção, Magali Biff Músicos: Gui Amaral, Marcos Leite Till, Zé Pi Assistência de direção: Ricardo Frayha Sonoplastia e operação de vídeo: Rodrigo Gava Operação de som: Danilo Cruvinel Operação de luz: Igor Sane Cenotécnicos: Enrique Casas, Fernando Zimolo, Wanderley da Silva Produção: Prod.art.br Direção de produção: Ricardo Muniz Fernandes, Ricardo Frayha Direção técnica: Júlio Cesarini Administração: Letícia Fernandes Assistência de produção: Lara Bordin, Mariana Mastrocola Assessoria jurídica: Martha Macruz de Sá

Realização: Sesc São Paulo, Instituto Adam Mickiewicz atuando sob a marca Culture.pl

[1] In: WHITE, Edmund. Genet: uma biografia. Ed. Record, São Paulo, 2003

[2] In: VINAVER, Michel. O teatro francês contemporâneo Conferência realizada dia 6 de abril de 1990, em Praga. Cadernos Letra e Ato. Ano 6. n. 6. Julho 2016. http://www.publionline.iar.unicamp.br/index.php/letraeato/article/view/574/544

[O Caixa de Pont[o] - jornal brasileiro de teatro - foi convidado pela organização do Festival Internacional de Teatro de São José do Rio Preto para fazer parte do Painel Crítico, com objetivo de fazer a cobertura crítica do Festival]


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