Iracema - o encontro do teatro
Por Marco Vasques e Rubens da Cunha
Há uma crise que é toda a gente, uma crise enorme que se agiganta sobre a vida e a arte. Existe uma crise estética e ética presente nessa crise de gente, crise da gente. O colapso se apresenta em todas as formas, fôrmas amorfas que reforçam a queda humana. Há mais que uma nuvem de lágrimas no espaço, há um mar de desequilíbrio a desaguar nos rios e córregos resistentes. É preciso combater. Necessário entrar na contenda para não estar amasiado à crise de gente privilegiada que insiste na defesa de sua bolha, de seu lugar de conforto, de sua vida de privilégio e que pretende, a todo custo, suturar a voz dissonante. Amordaçar o trânsito do grito.
Foto: Ferdinando Ramos
Então surge Iracema via Iracema contando a história de uma mulher semianalfabeta, que decide viver dentro de um ônibus. A flechada será lançada e não haverá redenção e idílio. A atriz Luciana Ramin espera as pessoas nos fundos do ônibus. A entrada na sua habitação é feita individualmente e com promessa de aconchego. Cada espectador é conduzido lentamente a uma consulta com Iracema e convidado a escolher um acento. O ritual de iniciação ao mundo de Iracema começa com a distribuição de catuaba, cachaça e salgadinhos. Cada passageiro do ônibus passa a ser um “visitante” em sua casa. Assentados confortavelmente, ao que um coletivo possibilita de conforto, as pessoas passam a ouvir os relatos de Iracema: ela mostra suas tralhas, expõe sua vida de espera e luta e a necessidade de partilhar suas dores e seus fracassos. Iracema procura os sentidos de sua travessia e com isso nos atravessa. Sem mãe, sem dinheiro e imersa no mundo da cultura do caralho. Iracema mostra os seus lábios de fel. Não é a filha de Araquém e sua virgindade não está consagrada às divindades. O romance histórico de José de Alencar, que se propõe metáfora da fundação do Ceará e da América, é redimensionado na dramaturgia do espetáculo Iracema via Iracema, criada pela cearense Suzy Lins de Almeida e encenada pelos grupos Trupe Sinhá Zózima e Agrupamento Andar 7.
Foto: Ferdinando Ramos
Dentro do ônibus, um mundo de objetos, quinquilharias, roupas de todos os tamanhos e as idades ausentes de corpos, fotografia, enfim, todo um mundo de referências populares geralmente tidas como menores, desprezíveis, mas que nessa casa-ônibus, ou casa-viagem de Iracema, ganha a contundência das coisas simples, diretas. Iracema não esconde e não se esconde de ninguém e, aos poucos, o território explode com a performance explosiva da atriz Luciana Ramin. Pronto: todos somos um pedaço do mundo de Iracema, todos, de algum modo, seremos exigidos na travessia, seremos também invisíveis, marginais, entregues à sorte do destino, mas capazes também de fazer o destino, melhor, capazes de embarcar no destino.
O teatro do encontro, conceito defendido como postulado de pesquisa do grupo, se torna acontecimento. E acontecimento teatral do mais alto nível de pesquisa e de coerência na linguagem híbrida proposta. Porque, apesar de ter se tornado um clichê, os versos de Vinicius de Moraes ainda permanecem como uma síntese precisa do que é a vida: “A vida não é brincadeira, amigo, a vida é arte do encontro, embora haja tanto desencontro pela vida.”
Foto: Ferdinando Ramos
Iracema via Iracema é também uma dessas sínteses, capazes de concentrar no exíguo espaço de um ônibus a nada exígua experiência de uma mulher que toma as rédeas de sua vida. Iracema é a vida que se encontra sendo manhã, ainda que tarde. Iracema é a vida que se encontra dentro de cada coletivo, de cada trem, de cada van de transporte clandestino que repleta esse país.
Iracema é a vida que se encontra sendo luz por cima dos abafamentos que os neomedievais religiosos estão impondo às câmaras, às comissões, aos caminhos da liberdade. Ainda que frágil, Iracema é a vida que se encontra estranha, como se fosse um estanho no peito, um colar, uma coleira, maior do que o pescoço pode aguentar.
Iracema é a vida que segue óbvia, multifacetando-se, violenta-calma-plena-forte-insignificante. Iracema é a vida que encontra e abarca tudo, feito arca de Noé que carrega não apenas um casal de cada espécie, mas toda espécie de vínculo, de vício, de virtude intrínseca. Ainda que nuvem, Iracema segue névoa. Ainda que vasta, Iracema segue casta, mácula desejada e transferida ao outro. O outro, esse paradoxo, esse desejo inalienável, o outro: pústula e salvação. Ainda que poluída, Iracema segue fonte, água primeira no alto da montanha, vértice de força e caos que se sustenta no cerne de tudo. Ainda que morte, Iracema segue vivenciando os rastros, as ruínas, as dimensões fortuitas do futuro. Iracema e a vida seguem, de maneira ininterrupta, em seus encontros e desencontros.
Ela brinca com o seu mundo corroído e devastado. Há muita ironia e riso nervoso, próprio dos desgraçados, no meio da travessia. Então Iracema se exaure e, em um rompante, expulsa os espectadores para a rua tal qual foi expulsa de seus sonhos. A entrada aconchegante e a saída abrupta do espetáculo nos deixam isolados, órfãos e irmanados do acontecimento teatral e poético que é Iracema via Iracema.
Este é o trabalho fruto da junção dos grupos Trupe Sinhá Zózima e Agrupamento Andar 7, que vêm fazendo trabalhos compartilhados desde 2013. Iracema via Iracema é a última experiência dessa união. Da Trupe veio toda a pesquisa em torno do ônibus como espaço cênico e o diretor da peça, Anderson Maurício. Por sua vez, a atriz Luciana Ramin pertence ao Agrupamento Andar 7, que desenvolve uma pesquisa sobre linguagens híbridas em teatro, dança, artes plásticas, fotografia, arte multimídia e cinema, todos elementos explorados apropriadamente por Iracema. Por fim, o teatro do encontro se torna encontro com o teatro, e os gritos da mulher sem destino fluem no seu trânsito, e a crise da gente se torna partilha sensível.
FICHA TÉCNICA
Atriz Criadora: Luciana Ramin
Encenação: Anderson Maurício
Dramaturgia: Suzy Lins de Almeida
Vídeo Mapping: Gabriel Diaz Regañon
Preparação Corporal: Veronica Avellar
Preparação Vocal: Letícia Góes
Assessoria Cenográfica: Mariana Chiarello
Sonoplastia: Rafael Paiola
Iluminação: Tomate Saraiva
Operador de Luz: Otávio Rodrigues
Técnico: Otávio Oscar
Assistente de Produção: Amanda Azevedo
Produção Geral: Tatiane Lustoza
Designer Gráfico: Andar 7
Comunicação: Paula Venâncio
[O Caixa de Pont[o] - jornal brasileiro de teatro - foi convidado pela organização do Festival Internacional de Teatro de São José do Rio Preto para fazer parte do Painel Crítico, com objetivo de fazer a cobertura crítica do Festival]