Projeto Brasil - a materialidade do mundo
Por Marco Vasques e Rubens da Cunha
1. COMPANHIA BRASILEIRA DE TEATRO
Grupo de artistas com investigação em linguagens híbridas capazes de materializar a presença no outro. Grupo de artistas que habitam no teatro o espaço de comunhão, da troca, do compromisso com a vida em sua realidade crua. Atiçadores de fogo. Incendiários da beleza. Mulheres e homens que beijam, dançam, atuam, cantam com o objetivo de encher de chamas as certezas brutas.
2. O AFETO
Música. Um pouco de cachaça distribuída ao público. É preciso comungar. O som se espraia em inquietações. Há uma proposta de perigo. É preciso acolher o público. Se faz necessário estabelecer que não há divisão entre palco e plateia. O mundo é o encontro. Não se entra no teatro e no palco para se falar mimeticamente sobre o mundo. Entra-se no teatro e no palco para ser o mundo, para comungar o mundo, para refletir o mundo na sua mais completa escuridão, mas com o pincel em chamas. É preciso atiçar fogo dentro do dentro. Por um instante moramos dentro da tela “o beijo”, de Gustav Klimt, depois somos soltos para adentrar no tríptico “O Jardim das Delícias”.
Foto: Vivian Gradela
3. UMA FUGA
É preciso proteger minha mulher. Sim. É preciso dominar sua carne, seu pensamento. Controlar. Controlar. Então, após a recusa do beijo, quando a nudez se apresenta sobre a cena, ele retira sua mulher do teatro. É preciso proteger a própria insegurança. As duas cadeiras vazias, ali na terceira fila do teatro, reafirmam a necessidade de queimar as certezas embrutecidas. Atiçado o fogo, começam as queimaduras e cicatrizes.
4. OS PÁRIAS
Margem. Marginal. Os fora. Os Além. Os do lado de baixo, invisíveis, apesar dos corpos, os olhos, da fala incômoda. Os párias, os paridos na desordem, no caos, nos acasos de um mundo vasto. Existir como resistir, sem alternativas, sem escolhas capazes de alento. Implodidos pelas guerras políticas.
Foto: Vivian Gradela
5. OS CORPOS E AS PALAVRAS
Mais uma vez as palavras se amontoam nos cantos, nos vãos, nos breves espaços vazios do corpo e lá ficam, à espera de que sejam descobertas, abertas, trazidas à luz. A apropriação devida da palavra pública, servida de humanidades. Algumas vêm, algumas se tornam imprescindíveis, inestimáveis, outras jamais aparecem, são detestadas, causam alguma vergonha. As palavras são vergalhões na carne, ou seriam espetos, como aqueles que se enfiam nas picanhas, alcatras e costelas nos churrascos de domingo. É preciso destelevisionar os domingos e impedir as espetadas sem desejo.
6. VIOLÊNCIA
Ficar sem eternidades frente à invasão cotidiana da violência.
7. O CINISMO HUMANO
“O cinismo como falsa consciência ilustrada”, como quer Sloterdijk, aquele que ri por último, como se fosse um ataque cardíaco. O cinismo dor, corte, atravessamento desnecessário de inumanidade. Ainda Sloterdijk: “a consciência cínica tira a conclusão das ‘experiências más’ de todos os tempos, e só faz valer a indiferença sem perspectiva da crua realidade”. O cinismo perde para o sonho. A realidade esmorece frente à indiferença. Existir em diferença é o que nos fará existir.
Foto: Vivian Gradela
8. DA SOLIDÃO
O que fazer quando a noite se instala e a solidão também não arreda o pé. Mais: não arreda o corpo todo. A solidão é um cão de guarda. Às vezes, a vontade de ser aquele sujeito que envenena os animais da vizinhança. Envenenar a solidão. Dar pra ela um pedaço de linguiça cheio de chumbinho, de veneno de rato bem concentrado, bem amarrado na praga também, que é para garantir. Ver o corpo da solidão estrebuchar, os tremores acontecerem, os olhos murcharem e ela morrer, bem silenciosa, bem frágil, na minha porta. Querer, mas não ser o vizinho maldoso, ser o dono da solidão, ter por ela cuidados de pai.
9. UMA PROPOSTA
Incendiar o homem. Expor o bicho que somos. No cenário soturno camadas escuras anunciam várias tonalidades do breu. Quatro corpos em desequilíbrio no sentimento do mundo. Combater. Beijar. Espancar as certezas. Refletir sobre o império da violência, da morte, da miséria. Ser um pouco a lágrima do outro. Rascar as intenções de moralidade. Imoral é o dia a dia vulgar das tramas de gabinetes, das bombas sem destino fixo. Descarregar as armas para destruir a produção da violenta. Existir na diferença é o que nos fará existir. Expor a violência, mas também desapropriar a violência de sua imagem, para que ela possa ser suplantada. Para isso é preciso propor o beijo, beber, cantar, dançar. Usar a palavra em estado de arma. Provocar pela imagem até que os sentidos encontrem um céu e uma boca. Nesse céu, o homem precisa existir na diferença de suas tonalidades. Existir na diferença é o que nos fará resistir.
FICHA TÉCNICA
Dramaturgia: Giovana Soar, Marcio Abreu, Nadja Naira, Rodrigo Bolzan. Direção: Marcio Abreu. Elenco: Giovana Soar, Nadja Naira e Rodrigo Bolzan. Músico: Felipe Storino. Trilha e efeitos sonoros: Felipe Storino. Assistência de Direção: Nadja Naira. Direção de Movimento: Marcia Rubin. Orientação de texto e consultoria vocal: Babaya. Iluminação: Nadja Naira e Beto Bruel. Cenografia: Fernando Marés. Figurino: Ticiana Passos. Direção de produção: Giovana Soar. Produção executiva: José Maria. Produção e operação técnica: Henrique Linhares. Administração: Cássia Damasceno. Direção de cena: Elisa Ribeiro. Projeto Gráfico: 45JJ. Fotos: Elenize Dezgeniski, Maringas Maciel, Marcelo Almeida e Nana Moraes.
[O Caixa de Pont[o] - jornal brasileiro de teatro - foi convidado pela organização do Festival Internacional de Teatro de São José do Rio Preto para fazer parte do Painel Crítico, com objetivo de fazer a cobertura crítica do Festival]
