Trilogia do desconforto e fim das utopias?
Por Marco Vasques e Rubens da Cunha
Em tempos de esfacelamento total do uso e da prática do conceito de ética e de moralidades pendulares, pode-se dizer que a Trilogia Abnegação, apresentada no Festival Internacional de Teatro de São José do Rio Preto, coloca em questão, para ficarmos apenas nisso, um tema bastante delicado na história da arte, que é a questão da moralidade no fazer artístico. Sob o epíteto de se produzir uma obra de ficção, pode-se tudo?
O teatro brasileiro, entre os séculos XIX e meados do século XX, presenciou um tribunal moral no qual o teatro era usado como mecanismo de adoçamento das instituições apascentadoras do todo social, tais como a preparação da mulher para o casamento, a defesa da família tradicional e a manutenção dos valores religiosos. Essa realidade, presente no teatro daquela época, hoje encontra ecos em outros setores da sociedade brasileira.
Foto: Vivian Gradela
Em 2014, a Cia. Tablado de Arruar criou a peça Abnegação para pensar o tempo presente e o passado recente pelo viés crítico e irônico, sobretudo ao questionar o pensamento da esquerda no poder. A peça se tornou uma trilogia. As duas outras partes estrearam em 2015 e 2016, respectivamente. A companhiafoi fundada em 2001 e começou como um grupo de teatro de rua; no entanto, expandiu sua pesquisa a outras formas teatrais. Em 2005, Alexandre Dal Farra assumiu a dramaturgia do grupo e passou a desenvolver um trabalho continuado de pesquisa. A Trilogia Abnegação é um dos resultados dessa investigação.
O objetivo do texto de Alexandre Dal Farra, que divide a direção do espetáculo com Clayton Mariano, é expor o fim da utopia da esquerda, decorrente da decadência do projeto político do Partido dos Trabalhadores. Na primeira parte, chamada apenas de Abnegação, vemos a reunião, cheia de tensionamentos, entre membros de um partido, mostrando a ambiguidade entre uma postura ética em relação ao exercício da política e os meios espúrios que utilizam para a toda do poder. Sexo, crime, delação, misoginia, traição, drogas e invenções jurídicas são apresentados ainda sem uma direção específica.
Foto: Vivian Gradela
Em Abnegação II, o foco vai para as circunstâncias e os fatos que marcaram a morte do prefeito de Santo André, Celso Daniel. Essas circunstâncias e esses fatos são reinventados, ou reinterpretados pela Tablado de Arruar, que se concedeu a liberdade de imaginar detalhes de uma suposta articulação criminosa dentro daquele cenário retratado.
Por fim, em Abnegação III, a provocação acontece entre os escombros do que teria sido essa utopia da esquerda. Situada no ano de 2014, ano em que vamos presenciar o acirramento político no país e um esforço hercúleo de uma massa reacionária, que não aceita a partilha do comum, de retomar ao poder a qualquer preço, os atores se revezam em seis cadeiras com uma tela ao fundo, variando em tonalidades vermelhas, acentuando ainda mais a quem o espetáculo pretende atingir. A proposta se assenta na fragmentação dos personagens e na economia de elementos cênicos, restando ao público a vocalidade, a voz como elemento principal dos discursos e das cenas. Essa vocalidade ganharia dimensões maiores se polarizasse, em alguma medida, a tensão dos discursos que se apresentam hoje. São dois os lados dados, mas apenas a vulgaridade da esquerda aparece. Na tentativa de fugir do binarismo discursivo, o espetáculo parece morder o próprio princípio e se torna um instrumento de crítica acrítico.
Foto: Vivian Gradela
Daí surgem algumas perguntas: a quem, neste momento crítico, a crítica proposta pela Trilogia Abnegação beneficia? É possível negar que a passagem do Partido dos Trabalhadores pelo poder resultou em novo modo de olhar o nosso contexto social? Podemos exigir uma responsabilidade moral da Trilogia Abnegação? Em que medida, ao exigirmos um compromisso ético do trabalho, não estaríamos caindo em uma moralidade às avessas? São muitas as perguntas e os desconfortos que a Trilogia Abnegação enfrenta e apresenta.
No entanto, há um discurso ingênuo na montagem em pensar que o pensamento de esquerda, no Brasil, encampa cegamente o discurso binário distribuído nas plataformas midiáticas, nitidamente construída e amigada com o que há de pior do pensamento de direita. Além de sugerir, o que não é de todo verdadeiro, que a passagem do Partido dos Trabalhadores pelo poder tenha seguido um projeto de Brasil igual ao instaurado pelas oligarquias políticas que há décadas minam o país.
A Trilogia Abnegação é um trabalho bem pensado, executado e totalmente consciente dos riscos e das provocações que assume. Contudo, o modelo crítico apresentado, muitas vezes, resulta em uma superficialidade ingênua dos assombrosos escombros dos nossos dias. A proposta de um teatro que provoque o desconforto, o choque e o espanto pelo exagero resulta em uma retórica que morre em si mesma.
FICHA TÉCNICA
Texto: Alexandre Dal Farra.
Direção: Clayton Mariano e Alexandre Dal Farra.
Elenco: Alexandra Tavares, Vitor Vieira, André Capuano, Antonio Salvador, Ligia Oliveira, Janaína Leite.
Cenário e Figurinos: Alexandre Dal Farra e Clayton Mariano.
Desenho de Luz: Wagner Antonio.
Operação de Luz: Wagner Antonio.
Provocação: Janaina Leite e Eduardo Climachauska.
[O Caixa de Pont[o] - jornal brasileiro de teatro - foi convidado pela organização do Festival Internacional de São José do Rio Preto para fazer parte do Painel Crítico, com objetivo de fazer a cobertura crítica do Festival]