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Destaques

Grupo Cena 11 e a Ocupação-residência: adesão ao não esquecimento

Por Marco Vasques e Rubens da Cunha


Tendemos, os habitantes do mundo da arte, a nos invadir e inundar o outro com nossas estratégias de ocupar o mundo. Ocupar com conceitos mais ou menos instáveis ancorados na palavra contemporâneo. Há muitas conceituações do que venha a ser o contemporâneo e, em grande parte, existe explícita referência à quebra das relações tradicionalmente estabelecidas em arte. Uma dessas noções tradicionais, para darmos um exemplo claro, é a noção hermenêutica de análise do objeto artístico que estabelece o horizonte do curso na dicotomia sujeito e objeto. Agora, pelo menos assim se pretende, o sujeito é sujeito na ampla acepção que o trocadilho invoca.

A noção de uma arte fraturada, de uma arte que seja acontecimento total vem sendo amplamente discutida, sobretudo pelos teóricos alemães e ingleses, nas últimas duas décadas. Aos leitores curiosos, sugerimos uma passada pelas teorias de David Davies, em especial o livro "Art as performance" e o "Estética de lo performativo", de Erika Fischer-Lichte. No entanto, voltemos ao debate inicial. Afinal, o que é o contemporâneo? Gostamos de perseguir um caminho aberto por Nietzsche, que diz que o contemporâneo é o intempestivo, e que foi ampliado por Roland Barthes e, por fim, na mesma senda, redimensionado por Agamben no livro "O que é o contemporâneo". Agamben se apropria da noção de intempestividade e vai além, pois acresce em sua fundamentação teórica que o contemporâneo carece de virar as costas, algo bastante benjaminiano, à luz e mirar a sombra, o escuro, o destituído de luz para se chegar a um ponto fugidio e, talvez, ígneo.


Foto: Cristiano Prim


Tudo isso não se trata de um exibicionismo teórico de nossa parte. É uma realidade posta, ainda que distante demais de meio mundo. Trata-se mesmo de dizer que, embora haja tantas opções, tantas teorias, tantos desejos de diferenças, muitas vezes o que vemos à frente é o primeiro mundo exposto, isto é, o mais binário dos binários dos mundos, com diria Pangloss, se olhasse o mundo desse tempo. Teoria e realidade, pelo menos na assombrosa realidade brasileira, dificilmente se esbarram na esquina e se convidam para tomar um vinho, assim, numa boa. E possível que nunca se amasiem mesmo.

E aí cabe a arte, que muitas vezes também se enrosca no próprio umbigo, mergulhar nas fagulhas apagadas. E de mergulho em fogueiras aparentemente apagadas, o Grupo Cena 11 entende. Desde seus começos, quando o grupo criou fama com coreografias intensas que faziam os bailarinos jogarem-se no chão, como no clássico Violência (2000) até em projetos recentes como Protocolo Elefante (2015), que esse apagamento da fronteira entre sujeito e objeto é uma marca do grupo. Seu olhar, seus gestos, suas coreografias, suas performances desestabilizam as fronteiras, internalizam fluxos, misturas, fazem com que o humano e o contemporâneo se coloquem frente a frente, se afrontem e se carinhem novamente.


Foto: Cristiano Prim


Na última quarta-feira, o Grupo Cena 11 fez uma ocupação-residência no Museu da Arte Moderna de Santa Catarina, denominada: adesão ao não esquecimento. Mais uma vez, o Cena 11 opta pelo mergulho naquilo que incomoda, pois memória viva, trauma, dor, realidade espetada em cada um de nós, tão acostumados, seduzidos, hipnotizados pelo esquecimento. Essa adesão a não esquecer é uma provocação intempestiva ao estar esquecido de cada sujeito, de cada objeto.

À entrada, uma máquina de sandices - por assim dizer e para fazer uma relação com a abertura da exposição do artista Paulo Gaiad - expunha sob uma lâmina de alumínio um crânio de cavalo, umas varas e objetos que se assemelham a um conjunto de pequenos sinos, que integrarão parte da vestimenta dos atores. Cadeiras, sete dançarinos/atores de preto. Três microfones e três espaços, pequenos praticáveis, em cor amarela no meio do espaço cênico delimitado ao princípio das ações. Hedra Rockenbach na condução musical e Alejandro Ahmed auxiliando na técnica.

A intervenção/ocupação do Grupo Cena 11, que as mentes preguiçosas vão logo conceituando de hermética, sobretudo, por ela negar, como pressuposto claro a noção binária de sujeito e objeto, começa a se desenrolar num tom de ritual e de selvageria. A primeira mediação se dá pela vocalidade e se expande, no melhor do que há no termo expandir, a uma luta corpórea que é uma luta de todos. Luta-se com o público, com o corpo, com o espaço, com os signos obsoletos, com os esquecimentos e com a própria arte.


Foto: Cristiano Prim


Luta-se também, pelas metáforas dos elementos cromáticos: o amarelo, o preto e o branco com o abismo e a barbárie sociais nos quais estamos mergulhados. Luta-se com a ratio, essa instância de viril poder e dominação, que pretende controlar e aprisionar os corpos e as instituições. Luta-se com o presente e se mergulha no passado, na ancestralidade animal, colocada para dormir, porque provoca e nos direciona a rotas sem controle, sem saída. Esmurra-se o som, o corpo, o espaço para mostrar o silêncio.

O que eram três praticáveis aparentemente pintados de amarelo se revelam espaço de queda, de abismo, de enfrentamento, de solidão. O que há por cima dos praticáveis é uma espécie de pó amarelo, que vai se espalhar pelo preto das roupas dos dançarinos/atores, pelo linóleo, pelo Museu de Arte Contemporânea de Santa Catarina e pelos corpos dos espectadores. É o amarelo-nação, o símbolo-ouro da riqueza, dentre outras possibilidades simbólicas, que se escorre desenhando catástrofes e novas cartografias. O que o Grupo Cena 11 nos dá é sobre o corpo, mas sobre todos os corpos na condição sujeito-sujeito. Oferece a presentificação do performativo em seu acontecimento total.

E para os comentários que ouvimos após o trabalho de que a intervenção é incompreensível, que é hermética, rememoramos uma resposta de Osman Lins que ao ser questionado porque era um escritor tão “difícil” responde que era porque não desdenhava o público, pois determinados artistas “procuram realizar uma obra inferior ao que consideram capazes de produzir, porque, segundo julgam, o público não é capaz de chegar até eles. Ou seja: acham que o público está e sempre estará aquém do que eles próprios julgam ser”. Osman Lins alegava que era um homem como os outros, feito da mesma carne que os outros, imerso até os ossos nos mesmos problemas, então seria incapaz de alguém não entendê-lo. O mesmo se pode dizer do Cena 11. Por mais herméticos que possam parecer, não há possibilidade de não compreendê-los porque eles são o que somos, eles estão onde estamos, mas eles também estão aderindo ao não-esquecimento, eles estão gritando, eles estão ali, presentificados, dando o que possuem de melhor, de mais intenso, ou fazendo aquilo que Reinaldo Laddaga chama de “Estética da Emergência”, ou seja, reduzindo a distância entre artista e público, entre sujeito e objeto, criando outra ecologia cultural.

Ficha técnica:

Criação, Direção e Coreografia: Alejandro Ahmed.

Criação e Performance: Aline Blasius, Edú Reis Neto, Hedra Rockenbach, Jussara Belchior, Karin Serafin, Marcos Klann, Mariana Romagnani e Natascha Zacheo

Direção de trilha e Performance: Hedra Rockenbach

Assistência de Criação: Mariana Romagnani

Figurinos e produção: Karin Serafin

Assistência de ensaio e preparação técnica: Malu Rabelo

Fotografia: Cristiano Prim

Sede e Preparação Técnica: Jurerê Sports Center - Centro Artístico e Esportivo de Jurerê


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