Ledores no Breu – a inauguração do mundo
Por Marco Vasques e Rubens da Cunha
Foto: Mauro Goulart
Há muitas maneiras de se aprisionar o homem, quase todas advindas da crueza e da crueldade erigidas por outro homem. Existem muitos modos de se anular a vida, todos são sustentados na opressão e verticalização das relações. A noção de saber e conhecimento como instrumento de força e aprisionamento perfaz um caminho longo na história do pensamento e da arte no mundo ocidental. Impérios já foram destruídos e construídos com base no verbo, no domínio da palavra, no domínio pela palavra.
Uma das primeiras preocupações do espírito colonizador é impor a língua, a religião e os costumes à colônia. Mas o mesmo verbo pode ter tonalidade e sabor de liberdade. Policarpo Quaresma, personagem de Lima Barreto, é acusado de não ter juízo porque possui livros demais em casa e por propor uma nova língua, uma língua que estivesse de acordo com a brasilidade. Sherazade estanca o feminicídio do sultão com o uso da palavra. Alice, em suas maravilhas, vive e sobrevive na linguagem.
É neste exercício entre o saber e sabor da língua e suas consequências como potência transformadora que se instaura o espetáculo Ledores no Breu, da Cia do Tijolo, que esteve em cartaz, no Teatro do Sesc Prainha, durante a décima quarta edição do Palco Giratório em Santa Catarina.
A Cia. do Tijolo nasceu do desejo de fazer um espetáculo segundo a obra de Patativa do Assaré. O nascimento da companhia culminou em dois espetáculos: Cante lá que eu canto cá e Concerto de Ispinho e Fulô. De Patativa do Assaré, a Cia do Tijolo foi até a poesia de García Lorca, gerando o Cantata para um bastidor de utopias. Tendo a poesia desses poetas populares, cantadores de seu tempo e de sua terra, a Cia do Tijolo firmou-se no cenário nacional como uma das mais inventivas e sensíveis companhias de teatro da atualidade.
Foto: Mauro Goulart
E é a inventividade e a sensibilidade que sustentam Ledores no Breu. Dessa vez, juntou-se o poeta popular que beirava o erudito, Zé da Luz, e o poeta erudito que beirava o popular: Guimarães Rosa. Além disso, juntou-se à empreitada o pensamento de Paulo Freire com as vozes de Patativa do Assaré, Lêdo Ivo, Luis Fernando Veríssimo, Cartola, Jackson do Pandeiro, Frei Betto, Ana Maria Carvalho, Chico César, Chico Buarque, entre outras referências explícitas ou implícitas no trabalho.
Essas vozes concentram-se no solo do ator pernambucano Dinho Lima Flor, sob a direção de Rodrigo Mercadante. A dramaturgia textual poderia resultar numa série de línguas desconexas, dada a pluralidade de vozes que constituem o trabalho, no entanto o que se apresenta ao espectador é uma costura inteligente e um recorte dramatúrgico potente, capaz de tomar o público por completo ao apresentar o nefasto mundo de contradições políticas, sociais e humanas que nos rodeiam.
Vestido de branco, signo da autoridade asséptica, e manuseando uma cadeira, símbolo primeiro da vida escolar, Dinho começa uma conversa com o público manuseando a cadeira que ora aponta a possibilidade de voo, ora a de prisão. No diálogo o ator apresenta um texto de Frei Betto, que nos conduz às questões fundamentais de Ledores no Breu: as duas possibilidades de uso da linguagem – uma como instrumento de opressão e pasteurização do homem, a outra com ferramenta de libertação da vida e suas consequências na esfera e no corpo coletivo e individual.
Uma vez o público dentro do teatro, o ator, com domínio total de sua expressividade corporal e vocal, começa a narrar a história de um homem que mata sua mulher e se entrega à polícia. O motivo do assassinato: ciúmes e honra. À medida que a narração avança percebemos que o homem assassina sua esposa de modo brutal porque não sabe ler. A carta que ela havia escrito ao homem que a assediava pedia para que ele não a importunasse mais, porque era de amor pelo seu companheiro que o coração batia.
Num cenário constituído de sacos de carvão, rolos de papel pardo e duas cadeiras, Dinho vai entrecruzando a história de Nina e de seu companheiro com outras vidas esmagadas pelo progresso, pela concentração de renda, pelo preconceito, pelo analfabetismo, pela intolerância e pela voltagem capitalista de nossas relações. E é aí que o pensamento de Paulo Freire vai se evidenciando mais e mais num exercício dialético real, sem binarismo. E a nossa dimensão cruel surge nos viventes que são expulsos de suas terras e nas violências sofridas no dia a dia, ao que muito acarreta em outras violentas.
Foto: Mauro Goulart
Ledores no Breu, como o título sugere, aponta para uma direção defendida por Agamben nos livros O que é o contemporâneo? e A ideia de prosa que é a de nos determos nos pontos escuros de nosso tempo. Será olhando para nossa ausência de luminosidade que podemos achar um ponto de fuga, uma rota que nos conduzirá a uma outra luz que não esteja contaminada pelos clarões presentes. Tal qual o filme Paulina, a peça Ledores no Breu se recusa ao exercício simplista de dualizar questões complexas, pois reflete sobre a violência como um caleidoscópio de violências e não no âmbito primário dos sistemas coercitivos que usamos para condenar ou absolver os crimes cotidianos.
Num momento em que o Brasil passa pelas mais escandalosas formas de usurpação aos direitos sociais e humanos, Ledores no Breu grita pela inauguração de um outro mundo, um mundo em que a voz humana seja recuperada em sua plenitude.
Ficha técnica:
Atuação: Dinho Lima Flor
Direção: Rodrigo Mercadante
Assistente de direção: Thiago França
Luz: Milton Morales
Trabalho de corpo: Joana Levi
Pesquisa dramatúrgica: Dinho Lima Flor
Concepção de cenário e figurino: Dinho Lima Flor
Música composta – Jonathan Silva
Produção: Juliana Gomes
Fotografia: Alécio Cézar
Informações para a imprensa: Juan Velásquez