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Destaques

RUÍNA DE ANJOS – BARBÁRIE E ALTERIDADE

Por Marco Vasques e Rubens da Cunha

Não foi por acaso que o filósofo francês Michel de Montaigne se tornou um dos nomes referenciais para se pensar a antropofagia. Nos seus ensaios, mais especificamente no ensaio XXXI, intitulado “Os Canibais”, o pensador é assertivo quanto à necessidade de se alterar a lógica do olhar sobre as civilizações tidas como primitivas e, consequentemente, construir um espaço de alteridade: “acho que não há nessa nação nada de bárbaro e de selvagem, pelo que me contaram, a não ser porque cada qual chama de barbárie aquilo que não é de costume; como verdadeiramente parece que não temos outro ponto de vista sobre a verdade e a razão a não ser o exemplo e o modelo das opiniões e os usos do país em que estamos”. O que a autor está a dizer, grosso modo, é que bárbaro e selvagem é o olhar que não comporta a diferença cultural de outros povos.

Criada em 2004, no Teatro Vila Velha (Salvador – BA), A Outra Companhia de Teatro é formada por artistas de diversas formações e origens. Sua pesquisa envolve a criação coletiva e privilegia uma poética que relaciona atores, plateia, música e dramaturgias. A companhia já possui 13 espetáculos no repertório e desde 2014 desenvolve um diálogo com comerciantes e moradores de Politeama, famoso bairro de Salvador, onde está localizada a sede da companhia. O fato é que esse diálogo interferiu diretamente na construção dramatúrgica do grupo, que passou a pesquisar o teatro documentário, trazendo para a cena a urgência, o fragmento, os pedaços da vida real. Essa experiência embasa o espetáculo Ruína de Anjos — que foi apresentado nas ruas de Florianópolis, durante a programação do Palco Giratório,e está a nos dizer, em consonância com as pistas deixadas pelo referido filósofo francês, que a ideia de civilização, nos termos vigentes, é uma barbárie. E propõe uma saída possível: a alteridade. A apresentação em Florianópolis foi marcada por uma itinerância que se iniciou no Largo da Alfândega e se estendeu às ruas Deodoro, Felipe Schmidt, Calçadão da João Pinto, Conselheiro Mafra e XV de Novembro.

Foto: Andrea Magnoni


Espalhados pelas ruas estavam: um cadeirante que vende café com cachaça,ouve música, conversa com o público e carrega a inscrição “poderia ser você” no encosto da cadeira;um pastor traficante carrega a Bíblia e comercializa a sua fé e a fé alheia; um burguês homofóbico que agride brutalmente a travesti e os demais párias que comungam o espaço público; uma travesti que almeja os vestidos expostos nas lojas e sonha com o estrelato como cantora; uma moradora de rua catadora de lixo que coleciona nadezas e tem um suposto dom da santidade;uma artista de rua que sonha em viver de sua arte de forma digna e é violentada por um agenciador de projetos culturais.

A galeria de viventes-personagens não diferia dos que circulavam pelo trajeto e nos espaços pelos quais A Outra Companhia de Teatro passou. Não raro o público integrante na procissão se deparava com figuras muito semelhantes às personagens dos atores. A ocupação da travesti dos banquinhos em frente ao Mercado Público, sabido ponto de prostituição, e do contorno que o trio faz do chafariz, conduzido pela travesti-cantora, sabido ponto de consumo e distribuição de drogas, além de outros pontos invisíveis à multidão e ao poder público, faz com que o trabalho dialogue com o seu postulado crítico e sua afirmação de que a selvageria está em cada indivíduo abandonado à sua sorte nos centros urbanos deste imenso Brasil de sufocamentos.

A fábula gira em torno de uma promessa de renovação do espaço público por conta da reinauguração de um cinema no centro da cidade. Putas, travestis, dependentes químicos, homens, mulheres, andarilhos, os nulos da utilidade, os homens e as mulheres farrapos, os não adequados, os que não se adequaram à voracidade capitalista, enfim, é para toda a espécie de pária que Ruína de Anjos pretende inflexionar nosso olhar.


Foto: Andrea Magnoni


Há sutilezas importantes nos encontros e desencontros dos atores, entre a aparição e o sumiço de um personagem. Umas cenas são mais calcadas em uma visível representação, em que a mistura com as gentes das ruas se quebra; no entanto, outras promovem um desacordo entre o que é ficcional e o que é real, levando o público, sabidamente consciente de que estamos diante de uma obra teatral, a reagir verbal e fisicamente. Os limites insinuados por Ruína dos Anjos estão em consonância com os limites diários da vida nas ruas.

São muitas as críticas que perpassam a intervenção que o grupo faz na paisagem urbana: a força policial, a higienização social, a indiferença, a violência gratuita, a concentração de renda, a exploração sexual, o preconceito de gênero, a violência contra mulher, a divisão do mundo entre vips e pipocas, a segregação racial, a burocratização da arte e da vidaea brutalidade do olhar indiferente dos privilegiados. Além dos movimentos coercitivos presentes nas estruturas e organizações de nossa sociedade, uma crítica acerba é feita ao fato de que mesmo entre os iguais a luta pelo poder é instaurada, ou seja, mesmo entre os desvalidos há uma hierarquização das relações e uma disputa por pontos “nobres” e por demarcação de território, mantendo-se, desse modo, a estrutura fora da estrutura dentro da estrutura.


Foto: Andrea Magnoni


A companhia se apropria bem da cidade e de suas simbologias, e os atores conseguem equilíbrio na saga que empreenderam pelas ruas de Florianópolis. O que poderia resultar em um ponto de crítica, a saber: algumas atuações centradas em um modelo de interpretação com aparente desconexão à origem da performance podem ser contrapostos à fala de um desses párias reais. Em uma das ruas, um homem em andrajos corria e dizia “isso é teatro? Então eu faço teatro todos os dias!” É desses todos os dias a tessitura de Ruína de Anjos. Desses rotineiros, duros e inaceitáveis todos os dias de abandonos e exclusões. É preciso estancar a barbárie e, para isso, precisamos fazer o exercício da alteridade, da outridade.



Ficha técnica:

Encenação: Vinícius Lírio

Direção de Cena: Luiz Antônio Sena Jr.

Criação: Luiz Antônio Sena Jr. e Vinícius Lírio

Dramaturgia e Texto: Luiz Antônio Sena Jr.

Elenco: Anderson Danttas, Eddy Veríssimo, Israel Barretto, Luiz Antônio Sena Jr, LuizBuranga e Roquildes Junior

Dramaturgia Sonora: Roquildes Junior

Cenografia e adereçagem: Luiz Buranga

Luz: Fernanda Paquelet

Caracterização: Thiago Romero

Direção de Produção: Luiz Antônio Sena Jr.

Produção Executiva: Anderson Danttas, Eddy Veríssimo e Roquildes Junior

Consultoria de encenação e dramaturgia: Francis Wilker, Eliana Monteiro e Luiz Fernando Marques

Preparação de Elenco: Vinícius Lírio

Preparação Vocal: Babaya Morais


Arquivo
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