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Destaques

Dia de Caça e Valdorf– a universalidade do teatro

Por Marco Vasques e Rubens da Cunha

Entre os dias 13 e 17 de setembro de 2017, ocorreu em Recife (PE) a terceira edição de PalhaçAria - Festival Internacional de Palhaças do Recife. Esta edição teve como homenageada Teresa Ricou, tida como primeira palhaça de Portugal. O festival reuniu uma mostra de trabalhos solos e em grupos criados e apresentados por mulheres. Além disso, houve oficinas, debates, mesas redondas que trouxeram à baila questões pertinentes à palhaçaria e à voz feminina dentro do gênero teatral.




Tivemos a oportunidade de assistir a dois espetáculos. O primeiro foi Dia de Caça, do grupo Las cabaças, de São Paulo. As atrizes Juliana Balsalobre e Marina Quinan trazem ao palco as caçadoras Bifi e Quinan, que estão há três dias sem comer. O que vemos é uma noite em que as caçadoras passam na floresta seguindo rastros de bichos, ouvindo e vendo “visagens” e achando soluções que nada solucionam. A peça é dedicada ao público infantil, então o humor físico, quase escatológico, leves palavrões, situações que se repetem são usadas com maestria pelas atrizes.

Se, dramaturgicamente, o trabalho não se sustenta muito bem - sobretudo pelo uso contínuo de esquetes que unem o fiapo narrativo - o humor e a presença cênica das palhaças compensam, ainda mais porque elas trabalham com domínio total dos clichês desse tipo de dupla: uma mais esperta e outra mais atabalhoada, uma mais fazedora de planos, outra mais vítima do acaso. O público infantil, que lotou o Teatro Apolo, riu, participou e ajudou as caçadoras palhaças. Ou seja, o objetivo de Dia de Caça foi atingido em sua inteireza. Cabe referir que a dramaturgia, na gênese da natureza do palhaço, já nasce borrada, fraturada porque será construída com a participação do público, no caso de Dia de Caça, mesmo a ranhura inerente à composição do trabalho, isto é, aquele fio condutor primordial, padece de amarrações, ainda que dentro da lógica do improviso. No entanto, como afirmamos, no plano do jogo cênico e da relação direta com o público Juliana Balsalobre e Marina Quinan, as Dianas da palhaçaria, flecharam o alvo com boas doses de risadas permeadas de beleza.


Dia de Caça. Foto de divulgação.


O outro espetáculo assistido foi Valdorf. Com texto, direção e atuação da gaúcha Aline Marques. A narrativa nos apresenta a história de Valdorf, um menino que fica preso num vidro de pepino. Quando sai do vidro, Valdorf começa a contar sua história, no entanto, essa história é contada em outra prisão: no pátio da escola fechada, enquanto Valdorf espera a mãe, que sempre se atrasa.

Sozinho em cena, Valdorf às vezes se transforma também em seu interlocutor, às vezes pede que alguém da plateia seja o outro personagem. A participação da plateia na peça é sempre um momento tenso, contudo, Valdorf é tão carismático, tão cheio de ternura e abandono, que nos compadecemos e participamos sem nenhum constrangimento. Há uma espécie de acariciamento pela dor, um convite de alteridade absoluta. Não há como escapar.

Valdorf é uma criança que está sendo danificada pelo mundo adulto. Nem mesmo seu trânsito entre o clown e o bufão consegue aliviar a dor que sente toda vez que lembra quando é preso no mundo azedo de um vidro de pepino, ou quando ele se percebe, mais uma vez, sozinho no espaço vazio de um pátio de colégio, enquanto a mãe não chega.

Só resta a Valdorf imaginar um mundo melhor, ao mesmo tempo em que relata a sua realidade. Repleto de camadas, Valdorf se apropria do mundo e de expressões tipicamente sulinos: os (des)amiguinhos com sobrenome alemão ou italiano, o sotaque, a maneira como os personagens são chamados pelo nome e sobrenome, a própria descrição de como é viver num vidro de conserva de pepino, as comidas, as brincadeiras. Mesmo havendo muita coisa específica dessa região do país, a peça ultrapassa essas características e consegue diálogo com qualquer espectador que já tenha sido criança, ou que tenha convívio com crianças, pois mostra a relação dessa criança com o próprio corpo, o mundo complexo da escola, as relações de poder entre as crianças, as vozes adultas que cerceiam vontades. A lesão do mundo adulto ao universo infantil que Aline Marques apresenta se torna nossa comunhão universal.


Valdorf. Foto de Iana Pinho.


O trabalho da atriz Aline Marques é inteiro e impressiona pela firmeza que apresenta a cada cena. A atriz some e tudo o que vemos é um menino com mais ou menos seis anos narrando sua vida, despejando sobre uma plateia adulta as consequências da negligência adulta sobre crianças. É um trabalho de corpo, voz e palavra que consegue sustentar-se inteiramente em uma hora de espetáculo.

Valdorf nos comove porque nos vemos nele. Nos vemos em sua tristeza, em sua fantasia, em sua solidão. E esse ver-se em Valdorf não é apenas nos pensarmos enquanto personagem, mas sim nos pensarmos como pessoas capazes de fazer o que os adultos fazem com esse menino. O texto, a direção e a interpretação de Aline Marques desnudam e incomodam qualquer um. Eis sua força ética e estética. Eis o teatro fazendo o seu trabalho de tocar na essência da vida, com arte e veneno, amargo veneno diário que corre pelo mundo, vasto mundo de perpetuações de nossas míseras misérias.

FICHAS TÉCNICAS

DIA DE CAÇA

Roteiro: Esio Magalhães, Juliana Balsalobre, LilyCurcio e Marina Quinan

Direção: LilyCurcio

Trilha Sonora: Alan Chetto e Henrique Rímoli

Iluminação: Edu Brasil

Figurinos e Canoa: David Taiyu e Sueli Andrande

Adereços: Davi Pantoja e Daniel Salvi

VALDORF

Criação, Direção e Atuação: Aline Marques

Assistência de Direção: Camila Diehl

Trilha Sonora Original: Roger Wiest

Iluminação: Gilmar Barcarol

Objetos Cênicos e Figurinos: Aline Marques e Marlene Marques

Ilustração: Ana Clara Marques.


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