Dois amores e um bicho - A alegoria da crueldade
Por Marco Vasques e Rubens da Cunha
Fundada em 1999, a Cia. Experimentus é uma das companhias mais longevas de Itajaí. Já montou 15 espetáculos para crianças, jovens e adultos. Desde o começo vem participado de inúmeros festivais e mostras nacionais. Sua última montagem é o texto Dois amores e um bicho, do venezuelano Gustavo Ott. Na verdade, trata-se de uma segunda montagem que o grupo empreende da mesma obra com outro recorte estético.
Ott, um dos mais proeminentes dramaturgos latino americanos, atua também como romancista, diretor teatral e jornalista. Desde a década de 1980 até agora, vem escrevendo e dirigindo inúmeros espetáculos, colecionando prêmios e sendo montado em diversos países. Com 54 anos, profícuo e incansável, Ott já tem mais de trinta obras que refletem sob diversos ângulos aspectos da vida cotidiana, sobretudo as violências, as censuras, as hipocrisias que praticamos e das quais somos vítimas também.
Foto: Marcos Porto
Com Dois amores e um bicho não é diferente. A peça estreou em 2004, em Caracas, sob sua direção. Nesses últimos anos, a dramaturgia já foi encenado em Cuba, França e no Brasil. O texto trata dos fascismos cotidianos que nos atingem e que estão cada vez mais fortalecidos, mas, ao mesmo tempo, revela as profundas contradições e delicadezas de cada personagem.
Um orangotango preso num zoológico acusado de praticar sexo com outro orangotango. Um cachorro é assassinado por seu dono por ser considerado homossexual. Uma bomba que explode numa escola matando centenas de pessoas durante uma festa. Os animais de um zoológico são dizimados, aos poucos, misteriosamente. Uma imprensa faminta, uma polícia dúbia em suas ações e um conflito familiar velado que aos poucos vai revelando ao público suas instâncias de desejos e vontades não assumidas. O mundo alegórico criado por obras como A metamorfose, O rinoceronte, A revolução dos Bichos, ganha mais um espaço com esse Dois amores e um bicho, pois são muitas as questões contemporâneas a serem exploradas.
Foto: Marcos Porto
A montagem da Cia. Experimentus apresentada no espaço cultural Itajaí Criativa, durante o V Festival Brasileiro de Teatro Toni Cunha, não se furta em tangenciar as sutilezas e as questões mais evidenciadas do texto. O primeiro mérito da montagem se encontra na direção, de Daniel Olivetto, que soube nuançar a ironia amarga proposta por Ott, manter a tensão exigida ao núcleo familiar e equilibrar os recursos cênicos escolhidos. Se a proposta do dramaturgo venezuelano é uma crítica ácida e aberta ao mundo contemporâneo ela também reserva muitas sutilezas por alegoria e o grupo joga com isso em muitos momentos, sejam com os vídeos selecionados para abrir e fechar cada quadro, seja na atmosfera propiciada pela iluminação, trilha sonora e atuação.
Em uma das cenas em que Pablo interpretado pelo ator Marcelo de Souza, e Karen, vivida pela atriz Sandra Konll, travam um diálogo no zoológico há a presença de uma criança em seu carrinho de bebê. A criança, em verdade, é simbolizada por uma zebra, o que dá a chave sutil de afirmar, de forma metafórica e alegórica, que sabemos de quais bichos estamos tratando, do bicho humano e suas animalidades e cruezas.
Sandra Knoll consegue fugir à estrutura linear de interpretação o que não ocorre com Andréa Rosa e Marcelo de Souza. A opção por uma linearidade interpretativa é nitidamente uma proposta do grupo, não necessariamente um problema, no entanto, os tensionamentos e as surpresas do trabalho se esvaziam um pouco, pois o público é jogado, de início, numa vibração e seguirá nela durante todo o espetáculo, o que se por um lado dialoga com os tempos esticados, duros, acirrados em que vivemos, causa, por outro lado, uma impressão de que os atores não dispõem de recursos para algumas variações rítmicas exigidas no trabalho.
Foto: Marcos Porto
Dois amores e um bicho se apresenta como um caleidoscópio de sugestão, não incorre em apelos fáceis, em estampar a violência de maneira simples e vulgar. Oferece ao espectador a possibilidade de adentrar em vários universos, várias camadas e se constitui, inteligentemente, em uma obra aberta sem incorrer no perigo de cair na violência caricata e na vulgarização das relações.
FICHA TÉCNICA
Texto: Gustavo Ott
Tradução: Marialda Gonçalvez Pereira
Elenco: Andréa Rosa, Marcelo de Souza e Sandra Knoll
Direção: Daniel Olivetto
Edição de Som e Vídeo: Marcelo de Souza
Cenário, desenho de luz, trilha sonora e projeto gráfico: Daniel Olivetto
Figurinos: Cia. Experimentus
Operação técnica: Daniel Olivetto e Natália Pereira
[O Caixa de Pont[o] – jornal brasileiro de teatro – foi convidado pela organização do V Festival Brasileiro de Teatro Toni Cunha para fazer a cobertura crítica do evento, que ocorreu em Itajaí, de 22 a 29 de outubro de 2017]