Primeiro milagre - A ironia prometida
Por Marco Vasques e Rubens da Cunha
Toda a obra de Dario Fo, iniciada no começo dos anos de 1950, está calcada na sátira política e social. Ele é uma das vozes mais pertinentes contra os sistemas opressores e corruptos que se apossam dos governos e lá ficam a custo de mentiras, negociatas e jogadas escusas. Ficam a qualquer custo, ainda que o preço seja a marginalização do humano, a instauração do inumano. Por isso, Dario Fo se tornou um impertinente, uma pedra no sapato das agigantadas estruturas de aprisionamento.
Trata-se de uma dessas vozes artísticas que se faz cada vez mais necessária de se ouvir e ver. Mesmo canônico, laureado com o Prêmio Nobel de Literatura em 1997, Dario Fo nunca se encaixou nos protótipos e estereótipos dos escritores reclusos ou distanciados. Engajar-se, comprometer-se, dizer e dizer-se o tempo todo era a sua grande característica. Teatral por essência, ele sempre fez esboços de suas tramas na pintura, depois apresentava suas ideias no palco e só após esse processo é que escrevia. Entendia a escritura como uma consequência da vida, da existência, não o contrário.
Foto: Marcos Porto
Talvez por isso, seu teatro tenha uma carga tão forte de improviso, coloquialidade, inventividade que fazem do humor de Dario Fo uma linguagem muito específica. Dario Fo cria muito sobre os mitos, as lendas, as histórias populares e religiosas. As fundações do que somos é o espelho de suas indagações sobre o que nos tornamos. Esse é o caso de Primeiro Milagre, texto-roteiro no qual ele faz uma releitura do nascimento de Jesus Cristo e do seu primeiro milagre, a partir de um evangelho apócrifo de Mateus.
Foi Primeiro Milagre, montagem do Grupo Risco de Teatro, que fez a abertura da Mostra Local, no Festival Brasileiro de Teatro Toni Cunha. A proposta do grupo, para além da fábula, é a de evidenciar as questões urgentes e presentes nas sombras de nossos dias. E quais seriam essas questões? No final da sinopse, o Grupo responde: “Primeiro Milagre vai além de elucidar uma história milenar, ele trata de temas que se mantêm fortes até os dias de hoje: racismo, miscigenação, ego e a falta de habilidade das pessoas em serem humanas.” Ressalte-se que ficamos na dúvida quanto à miscigenação nessa lista. A miscigenação seria um problema como os outros elementos? Não estaria o grupo querendo, no caso, se referir à xenofobia? De qualquer forma, não nos parece que a miscigenação tenha sido um dos temas abordados por Dario Fo nessa obra.
Foto: Marcos Porto
Formado por um coletivo jovem, a inquietação move os experimentos do Grupo Risco. No entanto, em Primeiro Milagre, encontramos uma emulação com o texto. Uma quase divergência com a estética de Dario Fo, que nunca poupou a sociedade de suas cruezas, revelando-as da forma mais despudorada, porque é na bufonaria, na destruição das estruturas opressoras e no questionamento das instituições mantenedoras da voz dominante que se assenta o seu verbo e a sua ação. Primeiro Milagre é uma dura crítica à construção do imaginário cristão e, também, de suas fabulações. É uma ficção que tem por objetivo intervir na realidade de uma ficção que se solidifica e se perpetua mundo afora. Dario Fo é um italiano que sabe muito bem das perversões santificadas pelo catolicismo raso e defensor de uma sociedade segregada, opressora e machista. Por isso, não há piedade e muito menos lirismo em sua proposição.
A montagem do Grupo Risco apresenta um caminho intervalar, um caminho que se desencontra, em muita medida, com a proposta de Dario Fo. E por quê? Em primeiro lugar, o riso que se apresenta não se aproxima da acidez e da crítica que Fo imprime em seu texto, a opção foi por organizar o trabalho a partir de um riso caricato, um riso fácil mesmo, que não nos deixa aquele sabor de desespero e de destruição que é comum ao bufão. Isso fica evidente na reação do riso expresso pelo público, um riso dilatado e suprimido de agruras. O grotesco sequer se apresenta. Há um riso afrouxado, calcado num realismo exagerado, algo típico da comédia comum, o que acarreta um esvaziamento da força do texto e, por consequência, da atuação de Rodolfo Lemos.
Foto: Marcos Porto
Embora ator de muitos recursos e com possibilidades de adentrar efetivamente nas cruezas fraturadas de Fo, a direção do espetáculo se mostra titubeante com as intenções do texto. Existe um lirismo no espetáculo distanciado da sua força expressiva originária. Não há espaço para compaixão e lirismo no que a dramaturgia traz. Aí surgem perguntas: no que exatamente o espetáculo toca? O que está a criticar? Qual o seu propósito? O trabalho não se arrisca na seara de destruição inerente a um bufão, que nada respeita. O lirismo, entoado pela música que inicia e termina a partitura cênica de Primeiro Milagre entra em conflito com a proposição da obra.
Somam-se a isso momentos delicados, e são delicados justamente porque o bufão não entra em cena. Tais como a ideia de um José, com sotaque nordestino, e com uma feição que afirma o preconceito alcunhado no senso comum, isto é, da preguiça e indolência daquela gente. É preciso que a ironia prometida aconteça, para que a cena em que o negro é afrontado e humilhado não deixe dúvidas ao espectador que se trata de uma crítica mordaz ao preconceito, não uma possível afirmação dele. Com isso não queremos dizer que a intenção de Grupo Risco é a de afirmar preconceitos, mas que a promessa de combatê-los ou não se efetiva plenamente ou deixa margem para o pensamento dúbio sobre questões tão afloradas na atualidade (vide os recentes debates em torno da obra cinematográfica Vazante, de Daniela Thomas).
Sim, Primeiro Milagre atravessa o preconceito e o bullying que Jesus sofre, mas esse não é o único ponto-âncora da obra. Há uma discussão, que a montagem escolheu por não acentuar, que é a sátira explícita de um dos mitos fundadores da fé ocidental. Num momento de agigantamento de instituições religiosas que se apoderam da fé alheia com discursos fascistas e com um intuito único de ampliar as desigualdades sociais e mercadológicas, não jogar luz sobre a questão e ficar ancorado na experiência da infância de Jesus faz com que todas as tramas de autoridade, de assédio, de abuso de poder e suas variações sejam quase que suprimidas. E, por isso, a ironia aterradora prometida, não se realiza na cena, embora tenhamos que destacar o trabalho de atuação empreendido por Rodolfo Lemos. O Grupo Risco de Teatro tem talento e competência para redimensionar Primeiro Milagre e investigar caminhos que possam potencializar a acidez, a crítica e nos afetar com um riso que ultrapasse a fronteira da docilidade.
FICHA TÉCNICA
Direção: Claudia Sachs
Atuação: Rodolfo Lemos
Sonoplastia: Natália Pereira e Rodolfo Lemos
Figurino: Rafael Orsi de Melo
Iluminação: O grupo
Produção: Grupo Risco de Teatro
[O Caixa de Pont[o] – jornal brasileiro de teatro – foi convidado pela organização do V Festival Brasileiro de Teatro Toni Cunha para fazer a cobertura crítica do evento, que ocorreu em Itajaí, de 22 a 29 de outubro de 2017]