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Destaques

Ao Som dos Teares - A dissonância do tempo

Foto: Dennys Raizer Manske

Por Marco Vasques e Rubens da Cunha

Romance, morte e mistério são as promessas do espetáculo Ao Som dos Teares, da Trama Grupo de Teatro, de Brusque. O romance e o mistério ficaram do lado externo do teatro; já a morte se figura no palco, de maneira tímida, pálida, mas aparece. Afinal, estamos em 1949. Na pacata Brusque, na Villa Ida, localizada nos fundos da Fábrica de Tecidos Carlos Renaux, local em que o industrial Ivo Renaux foi morto.

Ivo era um rico herdeiro de uma potência industrial criada por seu avô. Era jovem, tinha apenas 32 anos. As circunstâncias de sua morte nunca foram realmente esclarecidas, ficaram sempre dançando entre o assassinato e o suicídio. O que se sabe é que depois de comemorar o aniversário, Ivo Renaux passou a noite em um prostíbulo, perto da praia. Ao chegar em casa, embriagado, discutiu com a esposa, e ela foi dormir em um quarto de hóspedes. Dagmar, a esposa, não aturava apenas as bebedeiras e ofensas de Ivo, segundo relatos, também apanhava dele.


Foto: Luis Brusque


Naquela manhã mesmo, o corpo foi encontrado sobre a cama. Estava coberto até acima do peito por um lençol. Havia um revólver caído ao chão. Nenhum vestígio de pólvora foi encontrado em suas mãos. Houve a evidente suspeita sobre a mulher, uma bela curitibana que lembrava Evita Perón. Ela conseguiu absolvição, segundo opinião majoritária da época, por causa de um excelente advogado, contratado a peso de ouro. A justiça, a polícia, a imprensa, a família, a sociedade brusquense emitiram versões diferentes do fato. Tudo se tornou um mistério que ainda hoje movimenta a já não tão pacata Brusque.

Em 2002, o escritor João Carlos Mosimann publicou no livro Tragédia e Mistério na Villa Renaux, uma minuciosa narrativa que aumentou ainda mais o interesse sobre o caso. O livro serviu de base para a peça Ao Som dos Teares, da Trama Grupo de Teatro. A trupe se constituiu em 2016, por conta de uma oficina do BQ(en)cena, temporada teatral que chegou, em 2017, na sua terceira edição. A montagem surgiu de uma oficina ministrada por Silvio José da Luz, que assinou, em um primeiro momento, a direção do trabalho. O grupo se reestruturou e tem outra configuração, e o espetáculo, hoje, tem a direção de Everton Girardi.

O teatro amador é uma das maiores riquezas da historiografia teatral brasileira. Muito de nossa história teatral está fundada nos relâmpagos e lampejos instaurados por atrizes, atores, diretores, enfim, por profissionais de teatro amadores, que abriram, dentro de suas limitações, muitas clareiras no palco. Eram assumidamente amadores, no sentido mais amplo da etimologia da palavra e, ao se assumirem assim, enfrentavam o teatro com risco, radicalidade e experimentação. No entanto, há também um tipo de amadorismo que causa estranhamento, isto é, o amadorismo travestido de um glamour estelar, o amadorismo carregado de clichês e imerso em um modelo de teatro que pouco diz sobre nossos dias, sobre nossas vidas, sobre nossa época, seja ela passada, presente ou futura.


Foto: Luis Brusque


E é nesse registro de teatro amador impoluto, televisivo, fácil que se localiza o espetáculo Ao Som dos Teares. E explicaremos os motivos. Excetuando-se a iluminação de Edson Luiz Albino e os elementos audiovisuais criados pelo cineasta Ricardo Weschenfelder, os caminhos estéticos percorridos por Ao Som dos Teares deságuam em tecidos de monotonia.

E por quê? Ora, a dramaturgia construída para a cena, que poderia explorar as nuances da morte de Ivo, para trazer ao público um aprofundamento das questões vigentes no nosso contexto, tais como: a condição da mulher na sociedade de ontem e de hoje; a angulação dos lugares de fala, tal qual o faz muito bem Robert Musil em seu monumental romance O Homem Sem Qualidades; o debate em torno de uma possível legítima defesa; o machismo perpetrado e assustadoramente presente em nossas vidas; a violência imposta às mulheres; os modelos felizes e normativos de vinculações afetivas, enfim, a dramaturgia poderia expandir seu foco para além de uma adaptação linear do livro de Mosimann. Mas não, a dramaturgia prefere afirmar, em suas liberdades de adaptação, preconceitos como o da empregada inteligente e esperta em oposição à empregada desajeita e burra. Sim, as empregadas de Dagmar, mulher de Ivo, em Ao Som dos Teares, assumem estes lugares opostos que propõe um humor fácil ao público, um humor, inclusive, incompatível com a proposta cênica do todo do espetáculo e com a tonalidade expressionista e agônica da iluminação. Dagmar, ainda que absolvida, é julgada o tempo todo, com declarações explícitas, com insinuações e até piadinhas grosseiras. É evidente que isso condiz com os personagens da época, com os fatos colhidos e que estão no imaginário da cidade.

Walter Benjamin disse que “a verdadeira imagem do passado perpassa, veloz. O passado só se deixa fixar, como imagem que relampeja, irreversivelmente, no momento em que é reconhecido”. Benjamin também acresce, em suas teses sobre história, que articular o passado não implica conhecê-lo “como ele de fato foi”, porque nunca o sabemos por completo; teremos sempre que dominar alguns relampejos em detrimentos de outros clarões. Diante dessas premissas, é possível ver que o grupo preferiu não arriscar e, assim, apresentou uma caricatura da época, sem exercício crítico. Sem inflexionar o já sabido.

Os atores, que encarnam um modelo de atuação realista, se conformam bem na opção interpretativa, mas evitam o diálogo direto com o espectador. Preferem o exibicionismo a distância. Mesmo em momentos cruciais, como os discursos de defesa e de acusação, por exemplo, nos quais existe uma nítida intenção de que o público seja convocado a tomar parte e interferir no resultado, mesmo nesse momento, os atores se negam a se aproximar vivamente do espectador. Ir à boca de cena e falar ao infinito não se constitui diálogo e, de fato, é isso que ocorre.


Foto: Luis Brusque


O ritmo das passagens de cenas está bem comprometido, já que exige muito jogo dos atores. A opção de um palco praticamente destituído de cenário cria uma triangulação entre luz, projeção de imagens e atores que a direção não consegue costurar rítmica e dramaturgicamente. O tom gótico impresso entre o cenário, a luz, a projeção visual e a trilha, assomado ao tom fantasmagórico do figurino, não se encontra com a dramaturgia textual. Os mortos voltam para contar a história do jeito que os vivos a conhecem. Os mortos voltam para confirmar o que os vivos cristalizaram sobre suas histórias, não para nos apresentar novos relâmpagos.

É evidente que estamos falando de um grupo em formação, em pesquisa e que ainda tateia suas investigações. Trata-se do primeiro espetáculo da trupe e, para muitos atores, da primeira experiência no palco. Só isso já constitui motivo para festejar. No entanto, cabe perguntar: por quais motivos o grupo, com menos de dois anos de existência, goza de notória reputação e lota todas as sessões? Possivelmente por não enfrentar as feridas do modelo social em que vive. Por apresentar um teatro comportado para uma plateia acostumada ao conforto de não ser afrontada, não ser balançada nas suas certezas seculares. Optou-se por um teatro que conforma e confirma o já sabido, que atrai o público mais pela curiosidade a respeito de um crime tão famoso do que pelas possíveis reverberações e releituras que, infelizmente, não foram feitas. Para retomar outro dos famosos conceitos pensados por Walter Benjamim, Ao Som dos Teares é uma experiência que não chega à experiência como vivência, como algo que não é apenas situado historicamente mas que busca uma verdade possível da experiência. A fragilidade maior de Ao Som dos Teares é a de manter a história intacta.

FICHA TÉCNICA

Elenco da Trama Grupo de Teatro: Andressa Lauz Bigliardi, Arthur Bigliardi, Fernando Reis, Janaina Cavalcante Garcia, Jenifer Schlindwein, Juliete Silva, Luís Henrique Petermann, Roner Lucas, Talita Garcia, Thyago de Lima Vandresen e Valmor Deunizio Jr.

Direção: Everton Girardi

Texto (adaptação para o teatro de Tragédia e Mistério na Villa Renaux): Talita Garcia, Claiton Bigliardi e Everton Girardi

Figurinos: Andressa Lauz Bigliardi

Iluminação (atualmente): Edson Luiz Albino Júnior (Juninho)

Cenário: Luciano Mafra

Audiovisual: Ricardo Weschenfelder.


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