ENTREVISTA COM YONARA MARQUES
A ENCARNAÇÃO DOS AFETOS E DAS EXPERIÊNCIAS
Esta é uma entrevista com a atriz Yonara Marques. No entanto, parece ser uma entrevista coletiva, pois a voz de Yonara é plural, não fala apenas de si, mas também dos seus: o marido, o filho e a filha, os amigos, os gestores culturais, o público, outros atores e atrizes estão também falando nesta conversa. A certa altura, ela diz o seguinte: “Não nos descobrimos atores; nós nos formamos atores a partir de experiências vividas em nosso fazer diário, tanto artístico quanto de produtores que precisavam vender seu peixe; fomos nos estruturando com os próprios exemplos.” O teatro aqui se dá pela experiência prática, pela curiosidade, pela vontade de mudar de vida e arriscar-se pelas ruas, fazendo teatro de rua. Yonara fala sobre a sua longa experiência no Cirquinho do Revirado, criado com seu marido na década de 1990 e que se tornou uma importante referência teatral na região sul de Santa Catarina. Além disso, a entrevista passa pelo seu processo criativo, por sua formação, suas experiências com outros grupos e suas expectativas neste momento conturbado da história.
Acervo, 1997.
Para começar: como ocorreu seu primeiro encontro com o teatro? O que significou esse encontro?
No final dos anos de 1980, já comecei a participar de grupos de jovens, na época o lugar da galera se encontrar. Havia a Pastoral da Juventude, que promovia debates sociais muito interessantes. Nesse lugar, uma das ações mais costumeiras foi criar peças de teatro com engajamento político-social. Era um tipo de teatro que misturava coisas religiosas, porém da Teologia da Libertação de Leonardo Boff. Ali brincávamos, nos divertíamos e aprendíamos muito em geral. As temáticas eram das lutas de classe, das desigualdades sociais etc. Foi nesse contexto que conheci Reveraldo, num encontro de Jovens Cristãos da Pastoral da Juventude (ENJOCRI). Ele estava apresentando uma comédia que denunciava a Rede Globo e os meios de comunicação de massa. Isso em 1993. Eu e Reveraldo nos casamos um ano depois. Durante esse tempo, eu e ele trabalhávamos no comércio, mas sempre estávamos fazendo alguma coisa de teatro, porém no âmbito da diversão e do entretenimento infantil em família, principalmente em festinhas de aniversário da “sobrinharada” (eram muitos), hoje todos adultos. E, claro, nas Sextas-feiras Santas, teatro em comunidades, a Paixão de Cristo. Chegamos, em uma das encenações, a apresentar para 3.000 pessoas de cima de um caminhão. Em 1997, nasceu o grupo, a lona do circo, o Boneco Revirado, que contava e revirava histórias infantis... Nascia o Cirquinho do Revirado.
Foto de Joseane Duarte.
Pode nos falar um pouco sobre como surge a companhia Cirquinho do Revirado?
Em 1996, eu e o Reve, com o Luan de colo, fomos passar uma virada de ano com os amigos em Garopaba-SC. Lá conhecemos o Cirquinho da Josefina e ficamos apaixonados com a ideia da loninha de circo. Voltamos para Criciúma para continuar a vida, mas não conseguimos tirar essa ideia da cabeça. Reveraldo trabalhava como gerente de uma loja de eletrodomésticos. Eu, até o nascimento de Luan, também era do comércio de Criciúma. Estávamos com muitos desejos de trilhar um caminho diferente para nossas vidas. E o teatro era algo pulsante em nós. Estávamos sempre metidos em alguma criação. Nesta época eu ainda era muito impulsionada pelas vontades do Reve, porém sempre gostei muito do que realizávamos. Gostava da ideia de liberdade e tínhamos sonhos utópicos. Temos até hoje. Quando ele veio com o pensamento de a gente viver de teatro, Luan tinha um ano e meio. A ideia era a gente ter um cirquinho igual àquele que a gente viu em Garopaba. Quando ele me fez a proposta, aceitei na hora e criei várias viagens mentais, elaborando sonhos, fantasias. No mesmo dia que comprei a ideia do Reve, ele pediu a saída da loja em que trabalhava. Com o dinheiro da saída dele conseguimos comprar um minicirco. Entramos em contato com o Silvério Di Camargo, que também era o ator manipulador dos espetáculos a que assistimos e proprietário do cirquinho da Josefina. Ele veio a Criciúma o mais rápido que pôde e logo já fomos projetando e colocando em prática nosso sonho. Estou resumindo bastante essa história, que conto na íntegra no meu TCC. Tudo aconteceu muito rápido em nossas vidas. Em 1993, nos conhecemos; em 1994, nos casamos; em 1995, nasceu o Luan; em 1996, nasceu a ideia e, em 1997, fundamos o Cirquinho do Revirado. Neste formato de cirquinho apresentando teatro de bonecos, com o boneco Revirado, ficamos por uns 5 anos. Itinerando de praça em praça, fazendo projetos em escolas. As escolas dos arredores das praças iam até o cirquinho. Nesta época a gente apresentava dois espetáculos na parte da manhã, um antes do recreio e dois depois e repetíamos do mesmo jeito na parte da tarde. Eram oito espetáculos na maioria dos dias da semana. Algumas pausas eram necessárias para definir a produção da próxima semana. Cobrávamos um real por criança, e era a professora que chegava da sala dela com o montinho enrolado numa folha de caderno. Nesse montinho sempre tinha uns 25% a menos do número de crianças que entravam, porque de fato umas não tinham um real, e tudo bem também. No cirquinho, da metade da circunferência se estabelecia o lugar das encenações onde tinha uma empanada de madeirite bem colorida, do lado oposto à empanada. Tinha arquibancada em meia-lua contornando a lona, e ainda colocávamos 50 cadeirinhas à frente da arquibancada. No total, comportava 150 crianças sentadas e suas professoras. Nos finais de semana, nossa produção se dava com um público livre das praças. Saíamos pela praça chamando os pais com seus filhos para virem assistir ao próximo espetáculo. Existia um prólogo que fazíamos como atores à frente da empanada dos bonecos. Esse prólogo era uma esquete que foi crescendo com jogos de improvisos, tendo a plateia como termômetro sempre e, cada vez mais, gostávamos deste lugar à frente da empanada. Quando ganhamos nosso primeiro prêmio de edital: o EM CENA BRASIL, da Funarte, foi para a montagem de Amor por Anexins. Aí a lona era só imaginária e em cima de um picadeiro, com referência ainda ao circo, pois estávamos em pernas-de-pau, tinha um mestre de pista, banda de circo, o redondo da lona na mesma circunferência da loninha dos bonecos. Foi a partir daí que começou nossa história com a rua, nossa primeira montagem com uma dramaturgia, com direção de Lourival Andrade. Foi a partir daí que trilhamos esse caminho de atores do teatro de rua. Mas é certo que nossa experiência nas praças, nos pátios de escolas, nas ruas fechadas, montando a lona, fazendo propaganda cara a cara com o público da rua, panfletando em praias, já estávamos fazendo nossas próprias descobertas de como projetar voz, dilatar o corpo pra rua, o jogo cômico, a sutileza dos olhares de quem quer brincar, quem quer entrar no jogo, tudo isso já estava no aprendizado desde que começamos com o Cirquinho.
O espetáculo Júlia já circulou pelo país em encontros, festivais e circuitos dedicados às artes cênicas. Gostaria de saber como se deu o processo de criação desse trabalho e a experiência de trabalhar com Pépe Sedrez, da Cia. Carona de Teatro?
Em 2010, a peça teve seu projeto de montagem contemplado com o Edital Elisabete Anderle de Estímulo à Cultura, através da Fundação Catarinense de Cultura. Estreamos a peça em 2011. O processo de montagem passou por várias etapas, nas quais o grupo pôde pesquisar algumas linguagens que vieram a somar na construção da peça, como Oficina de Circo, Oficina de Bufão e Música para Teatro de Rua. A pesquisa já existia e era um momento no qual eu estava buscando respostas para muitas questões do universo feminino, com a Marcella fazendo cinco anos e o Luan completando o Ensino Médio, com 15. Havia uma necessidade de falar do movimento cíclico. Escolhemos um eixo norteador que seria “TUDO QUE GIRA”. Partimos para várias buscas. Sempre nesse contexto do que está no mundo, nesse redondo do planeta onde não existe o “fora”, tudo é dentro, tudo está... para chegar nestas duas figuras, Júlia e Palheta, transitamos por diversos lugares. Partimos de uma gama de temáticas ícone, como o circo de horrores, a bufonaria, a ciganagem, as rodas e saias... Eu estava fazendo dança cigana como rotina para movimentar meu corpo. Dança circular sagrada também fazia parte dessa rotina. Então nessa busca de vontades, desejos por este lugar de tudo que gira, foram aparecendo vários outros caminhos. Com o projeto aprovado, pudemos colocar em prática todas essas vontades que já estavam em nós nessa pesquisa que antecedeu o processo de montagem. O grupo se propõe, em cada montagem, a chamar um diretor diferente, por acreditar que se relacionando com pessoas e processos distintos, se aprende na prática que a arte teatral é múltipla. Para a direção deste trabalho, chamamos Pépe Sedrez, diretor da Cia. Carona de Teatro, de Blumenau. Buscamos entrar no universo dessas figuras errantes e imprimi-lo no corpo dos atores. Um momento crucial na construção do trabalho foi quando esses estímulos externos passaram a dialogar com as verdades do próprio ator. Foi incrível trabalhar com Pépe, com seu olhar sensível e tão preciso em determinados aspectos. Se não fosse o olhar dele, teria ido para outro lugar. Era muito material levantado em sala. Se não fosse a experiência e a sensibilidade do diretor, todo o trabalho recolhido não teria serventia. Toda a dramaturgia que surgia vinha de nossas ações, das provocações de Pépe. Além disso, a produção do espetáculo contou com artistas de distintas localidades, como a experiente diretora de arte Maíra Coelho, de Porto Alegre, que assina também os figurinos, além de participar da cenografia. Carlos Eduardo Silva, de Florianópolis, criou a maquiagem e a caracterização dos atores, enquanto Gregory Haertel assessorou a equipe no que tange à dramaturgia de Júlia. A peça já circulou por 18 estados brasileiros, participando de projetos nacionais como o Palco Giratório do SESC, além de festivais nacionais e internacionais. Recebeu várias críticas e prêmios.
Júlia. Foto de Diego Miranda.
Como surgiu a ideia do Festival de Teatro Revirado e quais são os principais desafios para torná-lo realidade?
O ano foi 2017. O grupo atravessava uma grande crise financeira derivada, principalmente, de conturbações políticas que o Brasil atravessava e atravessa. Iniciamos o ano que marcaria nossa história de 20 anos de trajetória do Cirquinho do Revirado. Queríamos muito fazer algo marcante para nossa região. Foi aí que veio a ideia de realizarmos uma grande festa, uma celebração, juntando alguns amigos que conhecemos nesta caminhada. Surgiu então a ideia de realizar o Festival Nacional de Teatro Revirado, mas como fazer se não tínhamos nenhum recurso financeiro para a realização e nenhum edital aberto que poderia bancar a ideia? Pensamos em compartilhar nosso sonho e tentar convencer as pessoas a apostarem nessa ideia. Então surgiu o financiamento coletivo para a captação de recursos para a realização do festival. Juntamos uma grande equipe de entusiastas para nos apoiar e ajudar na divulgação de um financiamento coletivo, uma espécie de chapéu virtual. Diariamente, de hora em hora, nossos olhos estavam atentos aos números e às estratégias de pedido de doação de recursos. Captamos pouco mais de 12% do valor que precisávamos para a realização do festival. Sabíamos que seria difícil a captação total (um pouco mais que 175 mil reais). Por isso pensamos em estipular cotas de patrocínio, e este foi o grande impulsionador para concretizar a ideia. Apresentamos pessoalmente o projeto para 12 municípios da região, além de diversas empresas e instituições. Tivemos retorno positivo da maioria dos municípios e, com isso, a ideia de um festival local já se tornaria um festival regional, com apresentações em vários municípios do sul de Santa Catarina. Dentre esses munícipios, a cidade de Içara se encantou e o prefeito Murialdo Canto Gastaldon viu no festival um grande momento para a cultura da região sul. Assim, se tornou o patrocinador com a maior cota, levando para Içara 70% das atrações. O primeiro festival contou com a presença de 21 grupos do Brasil e da Argentina, 49 apresentações teatrais e 112 pessoas. Apresentações em 6 cidades da região sul, além de mesas de debates, encontros gastronômicos e muita interação. Estimamos que aproximadamente 17 mil pessoas assistiram aos espetáculos que passaram pelo festival. A cobertura da imprensa foi fundamental para o seu sucesso. O festival foi divulgado em todos os meios de comunicação da região, tendo assim um caminho aberto para uma possível continuação deste que viria a ser um tradicional festival nacional de teatro da região sul. Importante registrar que, mesmo diante de tanta movimentação para captar recursos para a sua realização, o Grupo Cirquinho do Revirado acabou sendo o maior mecenas do festival, graças à premiação de um outro projeto: conseguimos pegar recursos, que seria do nosso cachê, para pagar os grupos e as despesas com o festival. Em tempos de pandemia, estamos estudando uma fórmula para fazer acontecer a quarta edição neste ano. A cidade de Içara assina como principal financiador desde a primeira edição, e outros municípios continuam entrando com suas cotas para receber atrações durante a semana do festival. A realização deste sonho traz para a região um importante debate sobre o fazer teatral e nos mostra o quanto a comunidade se interessa pelo teatro. Nosso maior desafio é fazer com que o festival tenha vida longa e que por muito tempo possa captar recursos para sua realização. Sabemos que é ano de eleições municipais e que existe a possibilidade de mudança nas estruturas administrativas locais. Manter o diálogo com o gestor público vai se tornar nosso maior desafio para as próximas edições. O Festival Nacional de Teatro Revirado é um festival organizado e idealizado pelo grupo, ou seja, não abrimos mão de nossas convicções e de nossa forma de fazer acontecer o festival. Queremos, sim, ainda dialogar com o poder público, independentemente da ala política em que ele estiver, desde que não haja nenhum tipo de cerceamento artístico.
Acervo do grupo.
Após muitos anos de atuação, você e o Reveraldo decidiram fazer um curso de artes cênicas. O que motivou essa procura?
Surgiu o curso de Bacharel em Teatro, na Unesc, em 2017, no mesmo ano em que estávamos completando 20 anos de história. Neste período também estávamos com o projeto de um festival nacional de teatro em nossa região. A Unesc é a universidade da nossa localidade que abarca vários municípios. A reitora Luciane Ceretta fez essa provocação pra gente: se estava abrindo um curso de teatro, nós, do Cirquinho, éramos os responsáveis por isso, pois foi a partir das nossas produções que nossa região começou a escutar mais sobre esse tema, começou a ouvir a palavra teatro, ler em jornais manchetes coisas como “Grupo de teatro está saindo em turnê pelo Brasil”, “Grupo de teatro foi aprovado no festival tal”, enfim, ela disse que gostaria muito de ter o Cirquinho dentro desse curso. Inclusive nos apoiaria com bolsa de estudo. Eu entrei fazendo vestibular, já estava com muita vontade de estudar, tanto eu quanto o Reve só tínhamos terminado o Ensino Médio, e, logo em seguida, estávamos mergulhados em produções com o Cirquinho. Nossa formação sempre se deu de forma autodidata. Estávamos sempre nos aprimorando. Somos curiosos. Em todos os festivais procurávamos formação em oficinas, participávamos de debates, sempre ouvimos muito os grandes mestres do teatro que passavam por nosso caminho. E, dependendo de cada montagem nova, estudávamos a respeito de muitos assuntos, como foi em 2001 com Anexins, quando fizemos um intensivo com Neyde Veneziano, do Rio de Janeiro, sobre farsa em Dario Fo. Ou na montagem de Júlia, quando mergulhamos nos bufões com Tatiana Cardoso, de Porto Alegre. Enfim, estamos sempre no caminho com o que nos era apresentado de possibilidades. Então eu comecei o curso fazendo essa ponte, da universidade com o Cirquinho. Reveraldo foi intimado também a fazer e conseguiu entrar por currículo escolar. No meio do curso houve uma demanda muito grande de trabalho, e Reveraldo decidiu que seria ele que abandonaria o curso para que eu continuasse, pois estava sendo difícil conciliar a produção do Cirquinho, várias direções que apareceram para ele, e não quis perder essa oportunidade. Também tinha uma demanda grande com o próprio festival. Eu consegui ficar e terminar essa graduação. Neste último semestre, finalizei o curso em aulas remotas, por conta da pandemia. Uma das coisas interessantes que surgiu dessa ligação do Cirquinho com o curso é que em todas as nossas produções do Festival de Teatro Revirado ou do Fertil, que é um outro festival que realizamos em alguns municípios aqui na região, a gente tinha o pessoal do curso para ser técnicos de produção (os anjos). No Fertil, eles entraram como instrutores das crianças nas escolas, enfim, trago essa lembrança para deixar marcado que eles tiveram dentro do curso também a oportunidade de entender a realidade de produção de grupo e trabalhar com a experiência em algo real que aconteceu no decorrer dele. Esperamos continuar com essa parceria.
Júlia. Acervo do grupo.
Este ano de 2020 tem nos colocado muitos desafios. Um deles é sobreviver num momento em que vivemos a criminalização da arte, o desmonte da educação e do país como um todo. As mídias sociais têm se mostrado um caminho, ainda instável, mas um caminho. Como tem sido a recepção dos trabalhos que vocês vêm desenvolvendo nas mídias sociais?
Estamos ainda no processo de entender tudo isso. Este mês será a primeira vez que teremos um trabalho vinculado nas redes sociais, nesse formato. Por outro lado, podemos relatar que nunca fizemos tanta live na nossa vida. Estamos sendo convidados por muita gente para relatar nossa história. Afinal, são 23 anos de caminhada. É um caminho longo a ser compartilhado e rende uns papos muito bons. Colegas teatreiros, professores amigos da arte indo a salas virtuais falando de nossa caminhada, das nossas produções. É um momento no qual nos pegamos revendo nossa história, trazendo para esse campo da organização de arquivos e memórias. Estávamos aprovados em dois festivais no estado de São Paulo, para ir com Júlia. Dois deles conseguiram readequá-los para festival on-line. Então fizemos também desse jeito, contando o processo de criação de Júlia e mostrando esses personagens no seu cotidiano, no contexto da pandemia, ou seja, sem poderem estar dentro de uma peça teatral. Surgiu, nesse jogo do cotidiano dessas duas figuras, muita coisa interessante. Este material vai ser exibido agora dentro do edital #SCulturaemSuacasa, da Fundação Catarinense de Cultura. E assim a gente vai tocando o barco com projetos que vão nascendo meio que um costurando o outro. Teve um projeto no início da pandemia, olhando cronologicamente de agora, até porque não tínhamos essa ideia de início, meio e fim lá no mês de maio, junho. Um projeto que fizemos no município de Içara, município vizinho de Criciúma. Foi muito importante pra gente. Estávamos bem sem saber o que fazer, já praticamente sem esperança de entrada de grana, várias circulações canceladas, festivais, mostras, projetos de 2020, todos indo embora. Certo dia chega uma mensagem pelo whatsapp do prefeito de Içara perguntando se a gente não ia inventar nada que pudesse levar para as crianças que estavam isoladas em suas casas, sem o convívio de seus colegas, professores e toda a comunidade escolar que, de certa forma, é o mundo das crianças. Ele nos coloca um desafio, de trabalhar algo que levasse um respiro para esses lares. Nossa periferia aqui dos arredores de Criciúma é, em grande parte, uma periferia rural, muitos lugares não chegam ao mundo virtual. Muitas dessas crianças não acompanham as aulas remotamente, pois estão nessa situação mais periférica. Outra questão é a condição socioeconômica de muitas famílias, que as impede de usufruírem destes mecanismos. Então reviramos nosso baú da época das histórias que o Revirado contava dentro do cirquinho. Diminuímos ainda mais o Cirquinho a ponto de ele caber na carroceria da camionete e fomos para esses lugares menos privilegiados levando teatro para ser assistido das janelas. Foi incrível. A resposta dos olhares vendo de longe, de trás dos muros, das venezianas, dos prédios de condomínios sociais. Foi um dos projetos mais lindos que já realizamos na nossa vida, o teatro sobre rodas.
Revirando a Padaria. Acervo do grupo.
O setor teatral é composto por toda variedade de gente. E não podemos ser ingênuos, pois sabemos que muitas vezes entramos no mesmo esquema de competição que tanto procuramos negar. Em Criciúma não é diferente. Hoje, como você vê as relações entre os grupos da cidade? Qual é o caminho para se superar as diferenças e tentar construir um horizonte comum?
Eu vejo que nossa realidade é de muita irmandade. Temos uma facilidade de aglutinar desde sempre. E nessa prática dos encontros acaba que também temos o espaço do Cirquinho, que é ao mesmo tempo sede do grupo, lugar de celebrar e tudo muito misturado com nosso lar, pois ela fica aos fundos. E nesse espaço proporcionamos muitas coisas, desde trabalhos corporais e vivências até saraus, encontros, comilanças. Somos quase que pioneiros aqui na região no que diz respeito à produção teatral. Um grupo de teatro que vive exclusivamente de fazer teatro, está em cena, cria projetos, proporciona fomento. Percebemos que somos muito respeitados pelos grupos que vieram depois. A gente acaba cuidando deste entorno. Tem o Fabiano Peruchi, da Cia. Teatro Lá nos Fundos. Ele fez parte das produções do Cirquinho como ator por 10 anos e quando resolveu fundar o seu próprio grupo, vimos também como uma força aqui pra nossa região. Tem o grupo Cirandela, que, de certa forma, nos sentimos meio que padrinhos deles, dando alguns suportes de espaço e também direção do espetáculo. Para contar estrelas, que, de cara, já teve uma aceitação muito legal da crítica e do público, percorrendo, já no seu primeiro ano, toda Santa Catarina. E a gente sempre parte do pressuposto que quanto mais grupos estiverem produzindo arte, produzindo cultura, mais possibilidades teremos de melhorias nas políticas públicas de cultura. Consequentemente nos fortificamos juntos. Diferenças sempre vão existir, mas estamos sempre propondo projetos nos quais a galera toda precisa estar junta.
O Cirquinho do Revirado assume uma postura afetiva sem medo. Acompanhamos o trabalho de vocês desde o início. Nunca nos esqueceremos da galinhada com vinho que comemos há quase 20 anos, quando fui visitar o grupo. O festival de vocês mantém esse pegada afetiva, isto é, vocês selecionam pessoas e grupos que têm um alinhamento ético de afeição com suas propostas. Gostaria que falasse um pouco sobre essa aposta no afeto.
É natural pra gente. Não existe uma elaboração mental; simplesmente as coisas acontecem sempre com muito afeto, pois é assim que somos. Sempre fomos do carinho, do acolher com comida, com atenção, com troca de experiências. Desde o início de nossa trajetória com o teatro, lá em 1997, 98, quando nosso primeiro trabalho com o Cirquinho se deu na capital, onde já de cara conhecemos muitos grupos (inclusive esses grupos se apresentaram no Cirquinho num projeto de verão de 1998). Desde sempre nossa tranquilidade em assumir que estávamos aprendendo, nosso lugar de pesquisador era muito sincero. Sempre fomos humildes e em todos os festivais que estivemos era para aprender, ver, perceber diferentes linguagens, tentar entender porque um espetáculo era mais interessante que outro; todas as oficinas que apareciam nós fazíamos, sempre com o intuito de absorver conteúdo. Com isso estávamos buscando nossa própria linguagem, nosso próprio construto. Logo depois já estávamos nas mostras e nos festivais participando também com nossos trabalhos. Nossa postura com todos os grupos era de muito carinho e afeto. Somos realmente amigos de nossos companheiros do teatro catarinense e de fora do nosso estado também. Não temos desafetos com ninguém. Então não poderia ser diferente num festival que nós organizamos. Eu e o Reve temos uma desconfiança de que esse nosso modo de agir seja por conta de uma infância cheia de irmãos convivendo juntos, dividindo, esperando, ouvindo. Reve vem de uma casa cheia, de seis meninos e três meninas, e na minha, éramos em seis meninas e um guri no finalzinho. Então a gente sempre soube este lugar da divisão do pão, dos afetos, da atenção da mãe, da colaboração com a casa. Isso era natural. Acaba sendo natural pra gente também até hoje. Nossa sede é um paradeiro de muitos grupos que estão em circulação pelo Brasil ou pelo estado. Sempre acolhemos com comida e bebida, acreditamos que é a melhor forma de demonstrar afeto. Comer e orar! Mas orar da oralidade que se quer comungar. Ouvir e escutar.
O Luan Marques nasceu no início do nascimento do grupo. Hoje é um artista que trabalha com teatro e literatura. Trabalha tanto no Cirquinho como em produções solos. Você tem por hábito opinar em suas produções?
Eu não tenho o hábito de opinar. Mas ele sempre mostra suas produções, e tanto eu quanto o Reve lhe apresentamos as impressões, nosso olhar. Sou uma mãe muito feliz com o que o filho produz. Leio tudo. Acho ele muito dedicado à sua escrita e admiro essa dedicação. É uma linguagem bem diferente da nossa, tem uma identidade própria. Me acho sortuda de ter um filho com uma sensibilidade tão grande. O olhar de mundo dele é algo que admiro muito. E é dele. Não tem interferência direta nossa. Apesar de saber que muito provavelmente o meio pode ter influenciado em algumas questões, afinal foram muitos encontros, festivais, espetáculos assistidos. “Gentes” com diversidades de ideias, pensamentos, espíritos livres. Somos feitos de um amontoado de lembranças e expectativas. Mas acredito que exista uma essência, que exista um cheiro que já é da pessoa desde sempre. Que nasce com esse EU que acreditamos ser quem somos. Vou dar um exemplo. Ele tinha apenas dois anos e pedia para eu repetir, por diversas vezes, músicas muito fortes dramaturgicamente falando como, por exemplo, o poema Morte e vida Severina, de João Cabral de Melo Neto, musicada por Chico Buarque. Ou Ney Matogrosso com Rosa de Hiroshima.
Reveraldo Joaquim
Como você avalia a cena teatral em Santa Catarina? Tem predileção por algum grupo em específico?
Acredito que a cena de Santa Catarina está cada vez mais diversa, e isso é maravilhoso para o estado, pois apresenta uma variedade riquíssima de artistas de formações e olhares tão diferentes, com concepções e experiências que enriquecem nossa cultura. Tem boneco, tem rua, tem cena contemporânea, tem contação de histórias, Teatro Lambe-Lambe, palhaço, bufão. Tem circo-teatro, dança-teatro, tem tudo que é linguagem. Não é mentira nem firula quando digo que temos bons afetos com todos. Difícil ter um predileto. Temos um afeto em especial pelo grupo Cirandela, de Criciúma. Sentimos que somos meio que padrinhos deles e temos sempre projetos juntos com muita afinidade nos discursos das obras elaboradas. Com a classe teatral de Itajaí também temos muito carinho e respeito por todos. A Cia. Carona, de Blumenau, que são das amizades antigas e por quem temos muita admiração. No Oeste, também tem muita gente que amamos.
É tradição da linguagem cômica, mais especificamente a do circo, o trabalho de envolver todo o núcleo familiar. Com vocês não é diferente. Por que a escolha pela linguagem do circo, pela rua, pelo riso? E como funciona a dinâmica de trabalho no núcleo familiar?
Não temos tradição na família sob nenhum aspecto, circo ou teatro. Alguns eventuais registros são de meu avô, que tinha, em determinado momento de sua juventude, uma banda, e eles tocavam em circo-teatro em Araranguá, e o pai do Reve, que tocava sanfona e tem relatos de que quando tinha circo na cidade de Orleans, ele tocava dentro do circo. Mas de fato, em vida de circo não existe tradição. A estrutura de grupo desde o início foi nesse contexto familiar. Eu, Reve e o Luan, e, depois de dez anos veio a querida Marcella. Não foi um coletivo de artistas que resolveram se unir para fundar um grupo de teatro. Foram duas pessoas que tinham vontades de mudança, aptidões artísticas e cuidado com o outro, que num contexto familiar compram um cirquinho para representar a vida com teatro de bonecos numa empanada dentro desse circo. As peças de teatro de bonecos acabavam virando comédia, pois Reve sempre foi muito engraçado; ele tem isso naturalmente, e eu desde sempre fui escada para as piadas acontecerem. Intuitivamente, já tinha um jogo legal desde o início. O público gargalhava dentro do circo. Bem mais tarde, com um amontoado de oficinas e aprendizados, fomos entender o que era clown, branco, augusto, bufão, farsa e todas essas terminologias que nos acompanham em todas as montagens. Não foi uma opção entre uma coisa e outra. Cada montagem nossa durante estes 23 anos, sem pensar na fórmula, era natural que provocasse riso. Mas também montamos peças mais introspectivas, como é o caso do espetáculo Contra-regra, que falava de um contrarregra de circo que fazia de tudo para que os números tivessem sua maestria e no final a sacada de que o grande show esperado era o dele, que pulava de um trampolim num copo d’água. Tem também a montagem do Natanael, que tem essa pegada mais das questões das lutas de classe, herança nossa do tempo dos teatros socias das comunidades e que, de fato, ficou um espetáculo poético, cheio de discursos éticos/sociais, mas, claro, lá dentro em alguns momentos do espetáculo aquele tempero do brincante Reveraldo, que se revela sempre. Por último montamos um espetáculo que se chama Girandola, montamos com uma pegada musical. O texto de Luan é muito profundo na relação de entendimento do tempo/espaço e não provoca só o “Riso”, mas emoções diversas. Júlia é outro espetáculo que gera um riso nervoso em muitos momentos. Acredito que cada montagem tem pelo menos um temperinho de comicidade, mas oscila muito com outras emoções. A rua acabou também não sendo uma escolha; ela foi acontecendo. Tinha a lona no início, e tudo era rua, as montagens da lona de praça em praça, ou em pátios de colégios. Depois as produções seguintes se deram sem a empanada dos bonecos, no caso, nosso trabalho de ator e atriz. Nunca nos imaginávamos dentro de uma sala, num palco, pois nossa vivência era a rua. Criciúma também foi um dos motivos, pois nossa praça é uma das melhores pra se fazer teatro. Tem uma arena linda bem no miolo, e as condições da sala de teatro da cidade nunca foram favoráveis para produzir um teatro de palco italiano. Nunca teve aparelhagem necessária, tanto que quando vêm grupos de fora se apresentar aqui, se faz necessário alugar todo o equipamento de luz e som. Talvez esse seja um dos motivadores de o Contra-Regra (único espetáculo de sala do grupo) ter sido encaixotado. Temos pouca prática de produzir fora da rua ou em espaços alternativos. Tudo isso tece essa colcha de retalhos que somos, e que não nos descobrimos atores; nós nos formamos atores a partir de experiências vividas em nosso fazer diário, tanto artístico quanto de produtores que precisavam vender seu peixe; fomos nos estruturando com os próprios exemplos. Enfim, nossa caminhada se dá apanhando as frutas que estão pelo caminho. Algumas estão na mão, outras têm que escalar um pouquinho para pegar, mas estão ali. Sobre a dinâmica de trabalho em família, posso dizer que talvez não tenha muita distinção de grupos não familiares. Claro que as coisas se resolvem mais facilmente no que tange aos assuntos de se encontrar, pois já estamos encontrados (risos). Mas somos muito profissionais em nossas montagens. Temos uma característica de sempre chamar uma direção de fora do grupo, talvez justamente para buscar esse olhar de fora, pois nos acostumamos com tudo girando em nosso entorno. Sempre temos mais alguém fora o casal somando com o grupo, e isso nos faz sair dessa zona de conforto, pois o olhar deste terceiro se faz presente nas construções. O trabalho corporal é feito no espaço/sede do grupo, que também fica na casa do casal; então precisamos estabelecer algumas regras sempre, senão fica tudo muito solto. É necessário ter uma disciplina de trabalho quando estamos pensando um novo projeto. Mas acredito que isso se dê com grupos que não tenham essa estrutura de família também.
Foto de Gilmar Axé.
Algum espetáculo marcou profundamente sua visão de mundo. Qual? E o que ele provocou em você?
Os Enganadores da Morte. Esse é o nome do espetáculo. E o grupo se chamava Os Enganadores.
Os atores são de Porto Alegre e já não existe mais o grupo. Os atores eram Tatiana Cardoso, Carlos Mödinger e Karin Flesch, porém, quando eu assisti, era o Luciano Wieser, do grupo De Pernas pro Ar, de Canoas, que estava substituindo a Karin. A direção era de Jackson Zambelli. Acredito que esse espetáculo tenha sido um divisor de águas em minha vida. É um dos mais incríveis a que já assisti. Isso foi por volta de 2002 e 2003. O fato de ser um espetáculo de rua com três atores em cena me deu um certo lugar de pertencimento. Mas acima de tudo era um texto dito por atores muito bons em cena, e me chamava atenção o ofício em si, assim como o que se estava dizendo. Eles estavam ali dispostos a nos convencer de que é possível não se deixar morrer. Enganar a morte era seu ofício, assim como o de atores e de atrizes. No caso o próprio ofício. Era uma temática que, de certa forma, nos transportava para melhores memórias, lembranças de um tempo. Memórias que formam um construto do que sou. E enganar a morte estaria nesse lugar de enganar o tempo que passa sem ter sentido algum. Qual é o impulso que essas lembranças nos trazem, que pode nos manter vivos? Apesar de estarmos o tempo todo tendo alguma expectativa de futuro, enganar a morte seria também uma maneira de driblar o tempo-espaço. Nessa época estávamos num momento muito legal e produzindo muito, viajando bastante com Amor por Anexins. Então a rua estava cada vez mais em nós. Esse espetáculo de um modo especial não me sai da lembrança, pois era o nosso mundo ali, na rua. O lugar de troca era o mesmo, a tentativa de não se deixar morrer assim, como nós, artistas, temos que driblar todo dia a possível morte de nosso ofício. A qualidade do espetáculo, num todo, e o que provocava na plateia me fez me apaixonar ainda mais por esse lugar da atriz em cena na rua. Lembro a Atriz Tatiana Cardoso sempre como uma mestra, tanto que anos depois a chamamos para uma pesquisa/oficina sobre o mundo dos bufões, na qual, de certa forma, já nos apresentava a um mundo dos grotescos em que, mais tarde, Júlia e Palheta acabaram nascendo.
Amor por Anexins - Arquivo do grupo.
Se tivesse que dizer algumas palavras aos jovens artistas que iniciam suas trajetórias, o que diria?
Dizer que o início é difícil para qualquer profissão. Os medos vão aparecer. Mas é preciso seguir fazendo. Elaborando maneiras de estar em cena. Descobrir seu próprio caminho é um desafio que só rola fazendo. Dando a cara a tapa. Só se aprende de fato a fazer teatro com o público. O tempo de uma piada eu só descubro quando encontro o riso no lugar certo. E de tantas vezes fazer eu vou descobrir esse tempo. É bom que haja movimento, sempre! Girar, promover, circular com seus trabalhos. Às vezes não compensa no que diz respeito à grana, mas sobretudo a experiência que se adquire é imensurável. Vale o giro, vale a gira. Sempre haverá aprendizado. De nossa trajetória toda até aqui, o que vale são os momentos que vivemos com as pessoas. É importante também ter os pés bem firmes no chão nas questões de privilégios. É bom saber que produzir teatro em nosso país não é fácil. Existe sempre uma sombra tentando ofuscar o lugar das artes e da educação. Podem observar. Requer um aprendizado das políticas públicas e estar atento às discussões, participar dos conselhos, entender as lutas por melhorias e por manter o que já conquistamos. É imprescindível que tenham uma leitura de mundo e das políticas sociais e culturais, que entendam das mazelas do mundo, pois o teatro é esse lugar de se fazer um construto de pensamento mais crítico sobre a humanidade e tudo que a envolve. E sobretudo fazer o que gosta. Quem faz o que gosta já tem uma vida boa. E ter uma vida boa já é um privilégio.