ENTREVISTA COM DENISE DA LUZ
UM OLHAR QUE REFLETE O MUNDO
“Se um artista é alguém que dialoga com seu tempo, é preciso olhar para o entorno e saber como se relacionar com ele.” Esse olhar sobre o entorno e o diálogo com o seu tempo é uma das bases sustentadoras da longa carreira de Denise da Luz. Atriz há mais de 30 anos, ela é uma das fundadoras da Téspis Cia. de Teatro, que, instalada em Itajaí-SC, vem mantendo-se como uma das mais inovadoras e sólidas companhias de teatro em Santa Catarina. Nesta entrevista, Denise fala de sua formação e da formação da Téspis, bem como da profícua parceria com o grupo Periplo, da Argentina. Outros temas abordados, com uma visão sempre muito límpida e segura, são o fazer teatral, a necessidade de atuação da gestão pública na cultura, a profissionalização e o aprendizado constante, além do seu processo criativo.
Como tudo começou? Qual foi sua primeira experiência com as artes cênicas e o que ela significou para você?
Tudo começou em 1988 quando participei do “Curso Básico de Teatro” ministrado por Valentim Schmoeler. Na época, era a única opção de estudar teatro em Itajaí, cidade onde nasci e moro até o presente momento. O curso teve a duração de um mês, durante o qual montamos o texto “Bailei na Curva”, de Júlio Conte, e realizamos uma série de apresentações ao final. Para mim foi uma descoberta de total identificação. Tive a certeza de ter encontrado algo que queria fazer para o resto da vida. Lembro que os participantes do curso eram pessoas muito talentosas e disponíveis. Alguns deles, assim como eu, continuam fazendo teatro até hoje. Então, o contexto geral dessa primeira experiência foi bastante determinante na minha escolha. Logo após a temporada de estreia, decidimos montar um grupo que ficou atuante durante dois anos, o Pé na tábua. É claro que, 32 anos depois, minha visão de teatro modificou-se bastante, mas aquela sensação de total realização quando estou no palco é algo que, afortunadamente, ainda me acompanha. Além disso, acredito que, como artista, tenho um papel na sociedade, que nos tempos atuais, me arriscaria a dizer, é extremamente necessário. Tenho tentado, no exercício do meu ofício, ser agente provocadora, com a intenção de propor às pessoas outras maneiras de olhar para as mesmas coisas, na tentativa de expandir em mim e no público percepções para além do pensamento vigente, com o intuito de contribuir para a construção de um mundo mais diverso e inclusivo.
A Téspis é uma das companhias mais longevas de Santa Catarina. Pode falar como surgiu a companhia e sobre sua parceria com Max Reinert?
A Téspis Cia. de Teatro, com sede em Itajaí (SC), nasceu na cidade de Caçador (SC), em 1988, durante um festival catarinense de teatro, promovido pela Federação Catarinense de Teatro - FECATE. Éramos umas sete pessoas, oriundas de outros coletivos, com desejo de nos lançarmos em novos caminhos na área teatral. Identificamos, na época, algumas afinidades entre nós. Durante 26 anos de atividades ininterruptas, várias pessoas passaram pela companhia, sendo que eu e o Max, que seguimos trabalhando juntos até hoje, somos do núcleo fundador. Desde o princípio nos interessou estudar o fazer teatral e aplicar tais estudos na montagem de espetáculos. Para nós não era claro qual era o caminho de busca a ser traçado. Dessa forma, partimos do que “não queríamos fazer no teatro”. Logo de início, interessou-nos realizar peças para infância e juventude, por entender que essa poderia ser uma eficiente e importante estratégia de formação de plateia. Além do que, parte da produção que conhecíamos na época, no nosso entendimento, tratava este público como menos inteligente ou incapaz de relacionar-se com uma obra artística mais complexa. Então nosso desafio era propor algo que fosse por um caminho contrário. O teatro de formas animadas apareceu logo em seguida, acredito que por oferecer muitas possibilidades lúdicas na montagem de espetáculos para a infância. A questão de um trabalho fortemente apoiado na corporeidade se manifestou também desde o início, talvez pela influência de Lucas David, que trabalhava com teatro e dança, e na época residia em Joinville. Com ele estudei e trabalhei por um período, e após a criação da Téspis ainda realizamos algumas produções juntos. O Lucas dirigiu o primeiro espetáculo adulto da companhia, Quarto de despejo – o diário de uma favelada, a partir do livro de Carolina Maria de Jesus, e nos impulsionou muito nesses primeiros passos. É importante salientar também que nossa formação na área se deu em grande parte na participação de festivais de teatro, no Brasil e no exterior, e nas interlocuções com diversos artistas e coletivos de teatro, e também de dança. Depois de um período de atividades, começamos a nos dedicar também à formação de jovens atores, tanto para suprir uma demanda existente na cidade (não possuímos até o presente momento uma universidade de artes cênicas) quanto para criar uma nova geração de atores e atrizes no intuito de contribuir com a continuidade do desenvolvimento desse segmento artístico em Itajaí.
O desafio de toda companhia passa por ter um espaço para desenvolver suas pesquisas e linguagens. Há quatro anos, a Téspis ocupa um local no qual ocorrem oficinas, exposições, lançamentos de livros e apresentações cênicas. Pode nos falar um pouco sobre essa conquista e seus desdobramentos, que é o espaço cultural Itajaí Criativa?
Ter uma sede sempre foi um sonho e uma necessidade. Quem trabalha com teatro sabe como é complicado ficar transportando cenários e equipamentos quando precisamos ensaiar. Sem contar que um espaço próprio pode criar circunstâncias muito mais favoráveis para o desenvolvimento de um trabalho. Seja pela liberdade de ensaiar em qualquer horário, seja pela facilidade de ter um ateliê para construir os elementos necessários, seja por ter espaço para guardar cenários, figurinos e equipamentos. Sem contar na energia concentrada que um lugar desses pode acumular. Entre os anos de 2000 a 2004, nós tivemos nossa primeira sede, mas ela teve as portas fechadas após esse período de existência, devido à falta de apoio financeiro, pois, como todos devem saber, um espaço totalmente destinado ao desenvolvimento de atividades culturais dificilmente consegue manter-se com recursos próprios. Então, no ano de 2016, surgiu a oportunidade, através da intermediação do escritor Antonio Carlos Floriano e com o aporte financeiro da Procave Empreendimentos (que tem contribuído para a manutenção da casa nestes quatro anos de existência), de ocuparmos o que viemos a chamar de Itajaí Criativa-residência artística, onde nos encontramos até o presente momento. A casa onde montamos nossa sede fica às margens do rio Itajaí-Açu, é patrimônio tombado pelo município e pelo estado e é conhecida pela população como casarão Almeida & Voight ou “casa rosa”. Os proprietários, Rafael e Jonas Dutra, a herdaram do pai, que, segundo consta, tinha enorme apreço pelas artes. Eles têm uma ligação afetiva com a casa e ficaram muito felizes pelo fato de alguém ocupá-la com atividades de arte e cultura, pois ela estava fechada há cerca de uns 15 anos. Está completando quatro anos que estamos habitando-a e, a não ser por este período de pandemia que estamos passando e por esse motivo de se encontrar fechada, a Itajaí Criativa tem tido atividades constantes: apresentações teatrais e musicais, cursos, oficinas, exposições, rodas de conversa, ensaios, festas etc. A ocupação da casa modificou totalmente a dinâmica da companhia (para melhor), sobretudo pela possibilidade de desenvolver projetos em longo prazo. Tem agregado muitos estudantes de teatro, artistas e pessoas da comunidade, além do que tem servido como um espaço cultural independente para a cidade, que apesar de ter um movimento cultural bastante expressivo, ainda carece de espaços para realização de atividades culturais. Sem contar que ela se encontra numa parte antiga da cidade, que está em movimento de plena revitalização. Nestes três anos de atividades (pois neste ano de 2020, que completamos quatro anos, estamos fechados desde março, devido à pandemia) já passaram mais de 5.000 pessoas pela Itajaí Criativa, entre alunos, artistas e público em geral, o que consideramos um grande feito, levando-se em consideração que é um espaço pequeno, independente e gerido por um grupo de teatro. A cada ano que começa, nós percorremos vários caminhos para garantir a subsistência e continuidade, pois até o presente momento não temos nenhum sistema de garantia permanente para seu funcionamento.
Vocês foram um dos primeiros grupos catarinenses a trabalhar com o companhia argentina Periplo. Gostaria de saber um pouco mais sobre os desdobramentos desse encontro e sua importância na trajetória da Téspis?
Nós conhecemos a Periplo em 1997, quando ela veio à Universidade do Estado de Santa Catarina – UDESC, em Florianópolis, realizar algumas ações formativas, a convite do professor André Carreira. Na ocasião, nós presidíamos a extinta Associação Itajaiense de Teatro e aproveitamos a vinda deles ao Brasil para trazê-los a Itajaí com o objetivo de ministrar uma oficina. Nos anos seguintes, eles estiveram no Festival Universitário de Teatro de Blumenau e numa edição do Festival Catarinense de Teatro, que aconteceu em Rio Negrinho; e aí iniciamos um diálogo, que nos despertou o interesse em aprofundarmos nossos estudos sobre o fazer teatral sob sua orientação, uma vez que apresentavam uma pedagogia muito clara sobre a construção do trabalho de atuação, a partir de uma visão que particularmente nos interessava. Eu e Max não possuímos formação acadêmica na área teatral, portanto interlocuções artísticas dessa natureza são fundamentais para a construção do nosso trabalho, sendo esta uma prática que temos exercitado com inúmeros artistas e coletivos durante nossa trajetória. Nossa aproximação com a companhia, além da participação das inúmeras oficinas ministradas por eles, levou-nos a realizar uma residência de três meses em sua sede de trabalho em Buenos Aires, “El Astrolábio Teatro”, entre os anos de 1999 e 2000, que resultou na montagem de Bodas - um ato cotidiano, espetáculo com o qual circulamos pela primeira vez por outros países, além do Brasil, e mantivemos, durante cinco anos, em repertório, reverberando intensamente e ampliando, dessa forma, nossa experiência artística. Além disso, na época, nós realizávamos, na Associação Itajaiense de Teatro, uma mostra de teatro local, que contava com grupos convidados de outros lugares, sendo que a Periplo foi convidada a participar em uma das edições. Eles vislumbraram algo mais deste evento e foi, então, que juntos criamos a “Mostra Internacional de Teatro de Grupo”, que teve edições entre 2000 e 2004, trazendo a Itajaí grupos de vários estados brasileiros e de países como Peru, Argentina, Itália, Espanha, República Tcheca, entre outros, o que agregou muitíssimo ao movimento teatral itajaiense. Este evento também foi extinto por falta de apoio financeiro, na época. A relação com a Periplo Compañia Teatral marcou uma mudança de paradigma para a Téspis, tanto artística quanto organizacional, e deixou como saldo uma forte amizade que permanece até os dias atuais. Ambas as companhias visitam volta e meia o país da outra, realizando apresentações ou ações formativas. A última parceria foi através da montagem de Esse corpo meu?, em que eu e Max atuamos, com a direção da Periplo, realizada em 2013 para comemorar os então 20 anos de existência da Téspis. Acredito que o que nos marcou nessa relação e que continua reverberando é que eles nos ensinaram a olhar para o “nosso quintal”, compreendê-lo e trabalhar a partir dele, a partir do que temos, a partir do que somos, ainda que tudo isso esteja sempre em movimento.
Bodas... um ato cotidiano, 2000. Direção de Diego Cazabat. Foto de Rivo Biehl
Este ano de 2020 tem nos colocado muitos desafios. Um deles é sobreviver de arte num momento em que vivemos a criminalização da arte, o desmonte da educação e do país como um todo. As mídias sociais têm se mostrado um caminho, ainda instável, mas um caminho. Como tem sido a recepção dos trabalhos que vocês vêm desenvolvendo nas mídias sociais?
A pandemia nos pegou de surpresa. Inicialmente pensávamos que seria algo passageiro, mas como logo percebemos que era uma situação que duraria por um tempo, pusemo-nos em movimento. Cerca de sete meses se passaram desde que a pandemia começou, e a verdade é que nos adaptamos rapidamente. É evidente e sempre bom lembrar que absolutamente nada substitui o presencial, mas temos encarado a experiência como algo provisório e necessário para continuarmos trabalhando. Adaptamos Os sonhos teus vão acabar contigo (obra em que eu atuo) a partir da obra de Daniil Kharms, que havia sido montado originalmente para palco italiano no ano passado (2019), dentro da programação do Projeto Ocupação Itajaí Criativa. Contamos muitíssimo com o Leonam Nagel de Oliveira – que tem uma larga experiência com o universo audiovisual e tem sido parceiro da Téspis nos últimos dois anos em vários projetos – para nos auxiliar a lidar com as questões tecnológicas. Demos sequência também a um processo de montagem do nosso novo espetáculo para a infância, que havíamos começado a ensaiar presencialmente em fevereiro (comigo em cena, além do Leonam citado anteriormente, Sabrina Antunes Francez e Matheus Groszewica, com direção do Max), de onde saiu um diário de criação e dois “curtas audiovisuais”, o Cadê meu ninho e Pa Pe Lê - uma aventura de papel. Inicialmente nos parecia uma tarefa impossível, com cada um ensaiando e levantando material em suas casas, e a gente se encontrando no Google Meet para discutir, dirigir e encaminhar as produções. Mas acredito que fomos compreendendo a dinâmica. Havia dias que estava tudo muito ruim, devido ao sinal fraco da internet e à impossibilidade de uma “relação” mais efetiva, necessária em todo processo criativo. Mas fomos aceitando também as limitações e aprendendo a lidar com elas. Afinal, nós, artistas, estamos acostumados a criar apesar das adversidades. A partir daí, não paramos mais. Adaptamos ainda o Pequeno Inventário de Impropriedades (escrito e atuado por Max Reinert, que completou dez anos de sua estreia) para versão on-line, participamos de inúmeras mesas, rodas de conversas a convite de grupos teatrais, eventos, escolas, universidades, participamos e ministramos cursos de formação na área teatral; e no momento estamos realizando um evento que conta com apresentações de peças teatrais (de grupos de outras cidades do estado de Santa Catarina), shows musicais, exposições, sessões de curtas metragens e oficinas. Uma loucura! Mas está acontecendo e vai até dezembro. Isso só para citar uma parte muito pequena do malabarismo que estamos fazendo para dar conta da situação que se apresenta. O momento não é nada bom, sobretudo para nós, artistas, que viramos inimigos do estado. Importante salientar também que na cidade de Itajaí vivemos uma situação privilegiada em termos de relação com o poder público. Temos um amplo diálogo e encontramos muita disponibilidade para realizarmos as adaptações necessárias para o universo on-line de projetos e editais. Já vínhamos de uma sequência de acontecimentos nada favoráveis ao setor, e com a pandemia tudo piorou muito. E repito que estou falando de um lugar de privilégio, pois, como sabemos, muitos artistas estão à deriva, sem recursos para prover suas necessidades básicas. Mas seguimos firmes e fortes, alguns dias mais, outros menos. Não nos resta outra opção. A vantagem de trabalhar em grupo é que a gente se apoia, um levanta o outro quando precisa. Um impulsiona o outro, acolhe, quando precisa. Estamos aprendendo muito com toda essa experiência, desde a crise gerada pela pandemia, como a situação política que estamos vivendo no país. Temos nos perguntado muito como seguir, como continuar, o que faz sentido e o que não faz mais. Temos procurado compreender qual é o nosso papel como artistas e como cidadãos no meio desse redemoinho. Temos procurado nos reinventar, nos redescobrir. Se um artista é alguém que dialoga com seu tempo, é preciso olhar para o entorno e saber como se relacionar com ele. “É preciso estar atento e forte, não temos tempo de temer a morte”. Felizmente o público tem nos acompanhado, comparecido e apoiado. Isso nos dá força para seguir lutando.
Tenho o privilégio de acompanhar o trabalho de vocês faz alguns anos e atestado essa procura da Téspis por trabalho que privilegia o corpo em determinados espetáculos, e, em outros, fazer um mergulho num teatro destinado à infância e à adolescência com o cuidado de tratar esse público como seres capazes de se relacionar com a arte de forma plena. Poderia nos falar um pouco mais sobre essas duas experiências?
Bom, esse é um assunto que daria uma dissertação de mestrado (risos). Na verdade, já deu. Em 2017, o ator Jônata Gonçalves, ex-integrante da Téspis, obteve seu título de mestre em teatro pela Universidade do Estado de Santa Catarina - UDESC, com a dissertação “A inquieta poética da busca – um olhar sobre o corpo no corpo da Téspis Cia de Teatro”, que em seguida foi publicada em livro. Mas vou tentar resumir. Acredito que todo teatro parte do corpo, que todo teatro é físico. Nós não temos um corpo, como dizia Grotowski, nós somos um corpo. Penso que o que muda é a abordagem para construir linguagem. Em alguns trabalhos, os aspectos corporais estão mais aparentes ou estilizados. Em outros, o corpo apresenta-se mais recortado, colocando a palavra em primeiro plano, palavra que também é corpo. Fala é corpo. A partir da minha experiência, penso que o corpo/mente/memória precisa estar disponível para a criação. Ele torna-se instrumento, receptáculo e caminho no processo da construção teatral. Em minha trajetória me deparei com essa percepção inicialmente quando comecei a trabalhar com o Lucas David, que, além de teatro, tem formação em dança; portanto, a questão do corpo está muito presente em seu trabalho. Eu estudei um pouco de dança quando trabalhei com ele. Essa experiência me fez compreender muitos aspectos da cena: as possibilidades “estéticas do corpo”, a relação com o espaço, com o ritmo, um melhor entendimento do “tempo”. Comecei a trabalhar com mais precisão também, entendendo que o corpo expressivo precisa ser modelado e pensado como um desenho no espaço e que acontece dentro de uma determinada fração de tempo. Em seguida, já trabalhando com a Téspis, quando começamos a estudar com a Periplo, estas questões foram se aprofundando. Eles praticamente dançam seus espetáculos. Aí, a gente começa a estudar e se dá conta de que essas diferenças nem existem na formação de alguns teatros do Oriente. Um ator também é bailarino e cantor. Desde então, nós não só investimos em um trabalho de preparação corporal dos atores, no sentido de desenvolver capacidades expressivas, como o utilizamos em boa parte das nossas montagens como possibilidade de potencial criativo. Nos espetáculos para crianças, essa é uma das premissas utilizadas como recurso de composição cênica. Na peça Um, dois, três: Alice!, por exemplo, embora tivéssemos partido dos textos “Alice no país das maravilhas” e “Alice através do espelho”, de Lewis Carroll, a montagem começou por exercícios improvisacionais que partiam de jogos corporais; tanto na relação com os objetos cênicos, quanto com brincadeiras rítmicas. Ainda sobre nossa produção de teatro para infância, partimos sempre da frase do Stanislavski, que diz que “O teatro para crianças tem que ser igual ao adulto. Só que melhor”. Pois se este é um público mais sincero, é também mais indefeso. Então há uma grande responsabilidade em trabalhar com quem se encontra em fase de formação e desenvolvimento mental e emocional. Seja na preparação dos atores, na criação da dramaturgia, na direção, na produção em geral, o tratamento que damos às montagens de peças para crianças é o mesmo que direcionamos aos espetáculos adultos. O que muda em geral é o tema e a linguagem, com os quais normalmente exploramos aspectos mais lúdicos.
Medeia, 2002. Direção de Max Reinert. Foto de Diego Ojeda
E seu encontro com o Max? Como vocês se conheceram? Quem conhece vocês percebe que há uma espécie de irmandade, de cumplicidade. Qual foi o momento mais crítico que vocês enfrentaram nestes anos todos?
Na verdade, eu conheci o Max quando eu era professora da pré-escola no Colégio Fayal. Estava substituindo uma professora de ciências no Ensino Fundamental, e ele estudava na sétima série. Falando assim vai parecer que eu sou muito mais velha do que ele (risos). São apenas seis anos de diferença, na verdade. É que na época eu tinha recém me formado em magistério (Ensino Médio) e já dava aulas. Mais tarde acabei estudando com o irmão mais velho dele também, o Jean, quando cursei a faculdade de Letras na Universidade do Vale do Itajaí - Univali. Ou seja, o caminho com os Reinert já estava traçado (risos novamente). Mas eu o reencontrei e conheci mais de perto foi fazendo teatro. Eu fazia parte do Grupo Teatral Acontecendo Por Aí, na época, e o Max, fez o Curso Básico de Teatro com o Valentim, e a partir dali começou a viver profissionalmente de teatro. Nós passamos a nos encontrar e conversar nos corredores da Casa da Cultura e percebemos que tínhamos alguns anseios parecidos relativos ao fazer teatral. Umas das questões que sempre aparecia nas conversas era a ideia de que, apesar de vivermos e desenvolvermos nosso trabalho em uma cidade pequena, fora do grande centro, o teatro que fazíamos não devia se limitar a essa noção. Para isso era imprescindível estudarmos e buscarmos referências. Aí, como comentei anteriormente, juntamente com as outras seis ou sete pessoas que também partilhavam de alguns pensamentos comuns, decidimos naquele ano de 1993, na cidade de Caçador, em uma das edições do Festival Catarinense de Teatro, fundar a Téspis. Bom, a partir daí, várias pessoas foram passando pela companhia, e nós fomos ficando. Atravessamos muitas crises, mas cada vez que você decide continuar trabalhando com outro, isso fortalece cada vez mais a relação. Acredito que a grande chave para conseguirmos trabalhar tanto tempo juntos, foi quando entendemos que apesar de termos pensamentos muitos divergentes sobre várias coisas, inclusive sobre teatro muitas vezes, que isso não deveria ser um problema. Ao contrário, compreendemos que um grupo se constrói nas diferenças. Encontrar um ambiente propício para que a criação possa emergir dessas diferenças, acredito que tenha sido fundamental. Acho que nos complementamos, em vários aspectos. Hoje o Max que é mais que um companheiro de trabalho, um sócio. É uma espécie de irmão. Irmão na arte! E tentamos nos apoiar, nos impulsionar e principalmente nos provocar. E penso que estes são fatores importantes para manter o trabalho da companhia em movimento.
O setor teatral é composto por toda variedade de gente. E não podemos ser ingênuos, pois sabemos que muitas vezes entramos no mesmo esquema de competição que tanto procuramos negar. Em Itajaí não é diferente. Hoje, como você vê as relações entre os grupos da cidade? Qual o caminho para se superar as diferenças e tentar construir um horizonte comum?
Acho que a gente precisa amadurecer, não é? (risos). Tem uma fase na vida que tudo está muito pautado no “ferro e fogo”. Quando a gente começa a fazer teatro (falo por mim, é claro), achamos que temos que ser amigos de todos e nos amar profundamente. Depois a gente vai compreendendo que é importante respeitar a diversidade de ideais e se unir mesmo com as diferenças quando é necessário lutar por um bem comum. Acredito que o movimento teatral de Itajaí amadureceu nesse sentido. E se, em algum momento, houve mais ou menos divergências, não se pode negar que sempre esteve em movimento. Prova disso foi a linda edição do Festival Brasileiro de Teatro Toni Cunha, que realizamos em conjunto no ano passado (2019). E nossa câmara setorial é uma das mais ativas e propositivas da cidade.
Medeia, 2002. Direção de Max Reinert. Foto de Luis Gaspar
A Karma Cia. de Teatro tem realizado algumas parcerias com a Téspis. Poderia nos falar um pouco sobre esse processo?
Na realidade, a parceria que se deu foi na montagem do Caê, espetáculo voltado para crianças, montado a partir da obra do artista visual Mauro Caelum, pai de Mauro Sérgio Santos Filho, ator e um dos fundadores da Karma. Nós, da Téspis, tínhamos uma proximidade com o Caelum, tendo inclusive utilizado algumas esculturas suas pouco antes de seu falecimento em Tomara que não chova ou a incrível história do homem que se transformou em cachorro. Segundo o Mauro Filho, o pai sempre lhe perguntava quando a Karma faria um espetáculo sobre sua obra. Aí, quando ele faleceu em 2016, o Mauro decidiu fazê-la e convidou o Max para dirigir, pois dizia que seu pai tinha enorme apreço pelo nosso trabalho, e eu participei com a criação do figurino também. Caê estreou em 2018. Foi muito interessante passear pela obra do Caelum, que o Mauro Filho, a Sara e o Kim (artistas visuais da cidade que eram parceiros do artista) levantaram através de uma vasta pesquisa e catalogação. Foi bem emocionante ver a peça concretizada e circulando da forma que está até hoje. A Karma é um grupo jovem que investe muito na formação e tem um inquietação na relação com o fazer teatral com a qual nos identificamos. Fora isso, somos amigos de cerveja também. (risos).
E a atriz-espectadora? Existe um trabalho em especial que tenha marcado a sua experiência como espectadora? E o que nele a impactou?
Nossa, difícil dizer. Assisti a muitas coisas e assisto até hoje. Procuro estar sempre pesquisando, estudando, conhecendo mais sobre o teatro, até porque tudo tem mudado muito rápido, e acho que, como artista, a gente precisa estar antenada com o que está acontecendo nas artes. Lembro que no início da minha trajetória, a Denise Stoklos era uma atriz que eu admirava e me inspirava muito. Interessava-me a forma como ela utilizava as capacidades expressivas do corpo e da voz. Os atores/atrizes da Periplo também. O domínio que eles tinham do ofício era algo que me impressionava. Mais recentemente as atrizes que me chamam atenção são a Juliana Galdino, com todo aquele seu potencial vocal, a Grace Passô, como ela trabalha com o mínimo para criar potência, a Janaina Leite, pela coragem, entrega, posicionamento como mulher/atriz. A Georgette Fadel tem uma linda trajetória também, sempre fazendo um teatro engajado, crítico. Tenho acompanhado a Silvia Gomez, dramaturga. Leio tudo que tenho acesso da produção dela. Já pensei inclusive em me aventurar na escrita dramatúrgica por influência dela. Mas um dos trabalhos que mais me impactou na vida foi Why the horse?, com a Maria Alice Vergueiro. Ali, todas as minhas noções de teatro foram atualizadas (risos). Foi uma experiência transcendental o que aconteceu naquela peça. Nem sei como explicar. Tocou-me profundamente. Com certeza passei a olhar a cena e a vida de maneira muito diferente.
Histórias de um Rei Tirano, 1997. Direção de Denise da Luz e Max Reinert. Foto de Rivo Biehl
Como já conversamos, vivemos um momento de criminalização da arte e dos artistas. Você já foi gestora cultural. Na sua percepção o que leva a gestão pública responsável pela formulação das políticas culturais destinadas ao setor cultural a tratar a arte e os artistas com tanta desconfiança?
Difícil dizer. Até porque não existe um único tipo de gestão pública, não é? A gestão é feita por pessoas, e sempre vai depender muito de como elas pensam, o que conhecem, qual sua formação. Como você falou, já fui gestora cultural e por esse motivo aprendi a olhar para este universo de outra forma. Acho que quem consegue fazer um bom trabalho dentro de um esquema engessado, que é o poder público, merece nosso aplauso. E tem muita gente boa fazendo coisas bacanas. Tenho a sensação de que, em alguns casos, falta é conhecimento, algum tipo de relação com a arte, de vivência. Em outros casos, acredito que é proposital mesmo. Ainda se tem uma ideia do artista como um indivíduo inútil, que faz algo que não é importante para a sociedade. A arte é considerada inútil, o que ela é, de alguma forma. A arte não “serve” para nada. Não tem utilidade. Pelo menos dentro desse pensamento capitalista em que a gente vive. Eu odeio a tal da “função social da arte”. A “importância” da arte, digamos assim, está nela mesma, em seu objeto e sua possibilidade (ou não) de conectar as pessoas com seu universo simbólico. Ela não precisa ser nada além disso. Mas isso é pouco para uma sociedade que está pautada pela lógica do consumo. Olhemos para os nossos famigerados editais. Quanto mais “contrapartida” você der, maiores chances tem de levar o prêmio. Difícil mensurar “valor” a partir desses parâmetros. A produção artística é de uma outra natureza, quando você começa a querer enquadrar nessa lógica de número de “atendimento”, fica complicado.
Índice 22, 2018. Direção de Max Reinert. Foto: Festival Isnard Azevedo.
Índice 22, 2018. Direção de Max Reinert. Foto de Leonam Nagel
Existe um procedimento específico que você realize na preparação de sua atuação?
Depende muito da situação. Se estamos falando dos ensaios para a montagem de um novo espetáculo, por exemplo, eu procuro estudar, buscar referências para o assunto que estamos tratando. Pesquiso a linguagem também, se for algo específico, em que eu possa buscar referências. Adoro ensaiar. Gosto de ensaiar muito, até sentir que me apropriei do material a ponto de não ter mais que “pensar” nele. Construir passo a passo uma composição artística é muito instigante, é onde se descobrem caminhos, onde a gente aprende algo da arte e um pouco mais de nós mesmos. Se estamos falando do que fazer antes de entrar em cena... Bom, gosto de estar no local da apresentação com pelo menos umas duas horas de antecedência (isso se a gente não passou a tarde montando o cenário, não é?), gosto de criar um clima de concentração. Faço aquecimento físico e vocal, e depois realizo uma prática que eu li no livro do Stanislavski assim que comecei no teatro e que faço até hoje, que é passar de maneira “técnica” por todas as ações e textos da peça (quando há texto), na relação com o espaço, com o intuito de “atualizar o corpo e a mente” para o que terá de ser feito, para depois, na hora da apresentação, me conectar apenas com o público e com o momento presente.