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Destaques

ENTREVISTA COM MILENA MORAES

O SABER E O SABOR DE UMA EXPERIÊNCIA


Por Marco Vasques


“O teatro não é obrigado a nada. Existe e resiste porque sua gênese é o encontro. E aqui estamos”, nos diz a certa altura Milena Moraes. E é nos encontros que se baseia a sua longa e profícua carreira. Atriz de teatro, de cinema e de televisão, ela também transita entre diversos gêneros: do humor mais debochado ao drama mais denso, o que vemos é sempre um comprometimento com a atuação. Nesta entrevista, Milena nos conta sobre sua formação, suas longas parcerias, sobre o processo criativo dos seus principais trabalhos, do mesmo modo que avalia o atual momento e como sua companhia teatral, a La Vaca, está se adaptando ao novo estado das coisas e aprendendo com ele.


Milena, quando tudo começou? Quando você decidiu que o teatro seria seu modo de expressão artística? Existe algum fato na infância ou na adolescência que tenha direcionado você à arte?

Comecei a “fazer teatro” no primeiro ano do Ensino Médio, aos 15, 16 anos. Morava no interior de São Paulo, na cidade de Botucatu, e a “divisão de cultura” promovia várias oficinas gratuitas. Fiz várias oficinas de teatro nesta época. Desde criança, quando eu tinha uns seis anos de idade, eu dançava, me apresentava, gostava do público. A oficina mais significativa foi com João Carlos Andreazza, através do Mapa Cultural Paulista, por meio da qual tive contato com história da arte e com vários autores que viria estudar na graduação. Muitos adolescentes e jovens que estiveram comigo neste momento de formação se profissionalizaram e até hoje exercem o ofício em São Paulo. Foi muito importante começar a fazer teatro justamente nesse período, época de escolher curso e de prestar vestibular. Acredito que hoje talvez fosse diferente, mas tinha aquele imediatismo da juventude, tinha aquela sensação de escolher algo que se ia fazer pro resto da vida... e eu tinha a vocação latente.


Este ano de 2020 tem nos colocado muitos desafios. Um deles é sobreviver de arte num momento em que vivemos a sua criminalização, o desmonte da educação e do país como um todo. As mídias sociais têm se mostrado um caminho, ainda instável, mas um caminho. Como tem sido a recepção dos trabalhos que a La Vaca Companhia de Artes Cênicas vem desenvolvendo nas mídias sociais?

Estamos num momento em que as artes da presença sofreram um golpe repentino, em que nos vimos impedidos de exercer nosso ofício, em que estamos buscando encontrar caminhos de seguir existindo, em que uma nova via ou módulo em fase de construção não contempla todas as obras e os trabalhos pré-existentes. A companhia tem feito, com sucesso, transmissões ao vivo para promover projetos que já haviam iniciado antes do distanciamento social imposto pela pandemia, e outras ações de formação, através do edital emergencial da Fundação Catarinense de Cultura. Particularmente tenho o desejo de produzir algo específico para essa terceira via (que não o teatro filmado, tampouco o cinema... embora seja inevitável que se beba dele), de criar performances intermídias. Talvez desenvolver e atualizar a pesquisa de linguagem iniciada em 2014, com Odiseo.com, em que a equipe, sob a direção de André Carreira, criou todo o espetáculo através da internet, e as apresentações eram realizadas em tempo real, em três países distintos, com interação entre os performers. À diferença do que se têm produzido agora é que contávamos com público presencial (e reduzido) nas locações do Brasil e da Argentina, e o público só sabia o que acontecia neste espaço. Nunca houve um streaming com todas as pontas da história. Nos próximos dias farei uma live, promovida pelo edital emergencial #SCulturaemSuaCasa”, para falar do meu processo de criação, inspirada na reflexão que fiz justamente a partir da provocação do Caixa de Pont[o] – jornal brasileiro de teatro, e que foi publicada no nº 8. Entendo que é propício neste momento voltar o olhar para a importância do que temos feito e para o compartilhamento de experiências, a fim de aumentar o repertório de possibilidades para o nosso trabalho e de fortalecer a base do que fazemos para um retorno potente e, inevitavelmente, atravessado pelo insólito de uma pandemia mundial.



Odiseo.com, 2014-2017. Direção de André Carreira. Foto de Humberto Araújo

Odiseo.com, 2014-2017. Direção de André Carreira. Foto de Humberto Araújo

Acompanhamos seu trabalho há praticamente duas décadas. Você é considerada uma das principais atrizes em atuação em Santa Catarina. Trabalhos como Kassandra e Odiseo.com jamais sairão da memória. Poucos artistas conseguem transitar pelo drama, pela comédia, pelo trágico e pelo tragicômico com tanta potência. Temos curiosidade em saber como é o seu método e sua preparação para cada trabalho.

Cada um demanda um processo distinto; é muito peculiar. O processo de criação no teatro não é solitário, é uma arte coletiva. Os “inputs”, os estímulos, as provocações que cada projeto apresenta à artista, à intérprete, ao elenco são muito únicos e reverberam em cada artista de uma maneira, que por sua vez reverbera para a equipe de outra. O modo de operar das equipes criativas e de cada artista dentro desse coletivo costuma variar bastante. La Vaca somos Turnes e eu, que nos associamos a artistas e a profissionais para projetos específicos, além de nos mantermos abertos para convites de outros coletivos e companhias. O conjunto de artistas varia bastante. No espetáculo Ilusões, dos cinco artistas envolvidos, entre direção e elenco, apenas Turnes e eu havíamos trabalhado juntos, nunca no mesmo elenco. É sempre um redescobrir. Percebo certos padrões no meu processo de criação individual. Um movimento meu, próprio. Uma relação de confronto com o texto, antes de aceitá-lo de fato. Momentos de encantamento inconteste e de crítica severa. Momentos de saber até onde o material me serve e até onde eu o sirvo, até que a simbiose acontece. Cada projeto gera uma onda de estímulos diferentes, a capacidade de se entregar e de entender, sem a necessidade de controlar a dinâmica do fluxo. Assumo que o processo de criação no teatro é interminável, pois uma apresentação é parte do processo da próxima. O Esteban Campanela sempre fala dessa ideia do teatro como obra inacabada, justamente nesse sentido. Há que se abrir, sobretudo com montagens que passam anos em cartaz, aos atravessamentos de eventos pessoais, sociais e políticos no trabalho. É tentar o equilíbrio sobre o que te afeta e como você pode afetar. É o exercício de desapegar e de transformar por todo o tempo de vida de uma performance. Quando se tem companheiras e companheiros abertos e dispostos a aportar com suas ferramentas criativas sem receios, quando se conta com uma direção capaz de gerenciar as potências de cada elemento com inteligência, azeitando amorosamente as engrenagens, tudo flui melhor e mais bonito.


Kassandra, 2012 - 2018. Direção de Renato Turnes. Foto de Jessica Michels.

Kassandra, 2012 - 2018. Direção de Renato Turnes. Foto de Jessica Michels


Ilusões, 2018-2020. Direção de Fabio Salvatti. Foto de Cristiano Prim (da esquerda à direita), Anderson do Carmo, Milena Moraes e Renato Turnes

Ilusões, 2018-2020. Direção de Fabio Salvatti. Foto de Cristiano Prim. Da esquerda à direita, Anderson do Carmo, Milena Moraes e Renato Turnes.


Você tem longa parceria com vários artistas. Gostaria que nos falasse um pouco sobretudo sobre seu encontro com Renato Turnes e com Malcon Bauer.

Nós nos conhecemos no âmbito da universidade. Todos nos graduamos em Artes Cênicas na Universidade do Estado de Santa Catarina - UDESC. Muitos dos artistas atuantes em Florianópolis se conheceram no Centro de Artes dessa universidade. O Malcon foi meu calouro, mas fizemos muitas disciplinas juntos. Com ele trabalho desde 2003; com Turnes foram quase dez anos, até que o convidei para dirigir Mi Muñequita, e fundamos, a partir deste trabalho, a La Vaca. Temos uma relação de amizade e irmandade muito forte, que começou por conta do que nos constitui como artista, pelo nosso amor ao ofício. Bauer me dirigiu ainda durante a graduação; Turnes, mais tarde. Com Bauer foram muitos anos em projetos de humor, nos quais todos escrevíamos e dirigíamos nossos próprios números. Amo estar em cena com Bauer. Fazemos isso há tanto tempo, que a contracena transcende. Também é um prazer roteirizar números juntos. Com Turnes, sobretudo na direção, fluímos muito. A comunicação desliza. Ele também é ator, o entendimento acontece no olhar. A relação é dialógica e horizontal. Turnes tem amor pelos seus atores.


Quando vocês criaram o show de humor Teatro de Quinta, o país estava tomado por uma onda de stand-up com sua característica primeira de ser executado por um comediante. Pode nos falar um pouco sobre essa experiência coletiva?

Foi um momento muito profícuo para mim e ouso dizer que para todos os artistas envolvidos. Estive por cinco anos no Teatro de Quinta, como artista, mas também como assistente de produção, o que me deu bastante asfalto. A frequência das apresentações – em princípio semanais e em um bar; depois mensais, primeiro na UBRO e depois no TAC, e a cada tanto no CIC – exigia que nos renovássemos sempre, pra manter o interesse do público. O show pagou minhas contas básicas durante um tempo, e se mantinha com bilheteria e microapoios. Produzíamos números e personagens numa escala em que não estávamos acostumados com outros espetáculos. Cada um dos artistas era responsável por criar as personagens do zero. Trilha sonora, texto, figurino. E havia muitos números em que estávamos em dupla ou trio, o último sempre todos juntos. Todos colaboravam para o refinamento dos números dos outros. Foi um momento muito importante para a minha formação. Como estávamos em cartaz toda semana, tínhamos pouco medo de errar, pois o “fracasso” de uma personagem ou um “punch” que não entrava bem numa quinta, podia ser recuperado na outra. Foi um período de aprender a lapidar tempo cômico, texto, abordagem, interação e improviso. Uma bagagem que só agregou.


Cabaret #RiAlto - 2013. Direção e Foto: Renato Turnes

Cabaret #RiAlto - 2013. Direção e Foto: Renato Turnes


O setor teatral é composto por toda variedade de gente. E não podemos ser ingênuos, pois sabemos que muitas vezes entramos no mesmo esquema de competição que tanto procuramos negar. Em Florianópolis não é diferente. Hoje, como você vê as relações entre os grupos da cidade? Qual é o caminho para se superar as diferenças e tentar construir um horizonte comum?

Tentando analisar sua pergunta... creio que, embora acredite nos editais como uma forma menos desigual de distribuir recursos, visto que não se depende exclusivamente da relação comercial com uma patrocinadora da iniciativa privada, acredito que é aí que podemos correr esse risco de um “esquema de competição que tentamos negar” que você coloca. Falando aqui do nosso quintal, na esfera municipal e estadual, não identifico competição insalubre entre artistas ou companhias.


Esteban Campanela fez sua tese sobre o processo de Kassandra. Como foi acompanhar a imersão que ele fez? Como surgiu a ideia da montagem do texto de Sergio Blanco?

Esteban sempre colaborou com a La Vaca (que mantenho com Renato Turnes há 12 anos), desde os seus primórdios. Ele quem me apresentou o texto de Gabriel Calderón, o “Mi Muñequita”, encenação que inicia os trabalhos da companhia. A partir daí foram sucessões de colaborações dele, primeiro como tradutor, depois como pesquisador, e ainda na equipe de produção. Esteban produziu as temporadas de Mi Muñequita e de UZ no Uruguai. Ele também me falou da estreia da Kassandra uruguaia, que foi o que despertou meu interesse, e fez o meio de campo para que tivéssemos acesso ao texto e negociássemos os direitos. Eu me lembro de ele me mostrar a matéria no jornal. Um solo com Roxana Blanco (irmã do autor), dirigido por Gabriel Calderón, em que ela interpretava uma travesti, em um bar, em inglês. Amei a ideia. Em uma tarde fizemos contato, lemos o texto, e Blanco nos autorizou a montar. Isso foi no final de 2010. No ano seguinte, o projeto foi contemplado com o extinto Prêmio FUNARTE de Teatro Myriam Muniz e, em 2012, estreamos. O espetáculo foi mantido em cartaz até 2018. A pesquisa sobre o meu processo de criação em Kassandra foi tranquila. Não tive que me acostumar com alguém “de fora”, pois ele sempre acompanhou ensaios e processos. Ele coletava discretamente o material para o seu dossiê, fotografava meus textos manuseados e desgastados, presenteava Kassandra com presentes... um deles o bonequinho do Pernalonga usado em cena. Acompanhou tudo, desde o princípio. Nossas discussões em sala de ensaio, me acompanhou às casas noturnas para conversar com gerentes. Uma presença certa, constante e que sempre me trouxe segurança. Atriz e produtora do espetáculo, era fundamental esse suporte de produção. Como somos casados, nossos diálogos sobre a montagem, os retornos do público, as minhas transformações pessoais (e, consequentemente, como intérprete) foram acompanhadas por ele de forma muito orgânica e espontânea. Ele acompanhou Kassandra da primeira à última apresentação, pôde compartilhar de perto cada passo do crescimento da encenação.


Mi Muñequita, 2008 - 2012. Direção de Renato Turnes


UZ - 2014 - 2018. Direção de Renato Turnes. Foto de Cristiano Prim.

UZ, 2014 - 2018. Direção de Renato Turnes - Cia La Vaca. Foto de Cristiano Prim.


UZ, 2014 - 2018. Direção de Renato Turnes - Cia La Vaca. Foto de Cristiano Prim.


Existe, ainda que essa fronteira esteja sendo borrada, uma certa dicotomia entre a arte que se produz dentro da academia e a que se produz fora dela. Como você vê essa questão?

Por muito tempo senti a academia como uma “usurpadora” da pesquisa e da investigação em arte. A única pesquisa que parecia passível de validação por onde transitávamos era a acadêmica. Se a pesquisa não viesse dela, devia passar por uma certa assepsia para ser reconhecida. Temos esse fetiche pelos títulos... (risos) Entendo que é necessário pensar uma decolonização de saberes e de discursos. Acredito que esse limite tem sido diluído por mérito de ações afirmativas e de muita discussão política. Talvez horizontalizar ainda mais essa dinâmica permita um trânsito mais dinâmico e equânime dos saberes.


Em momentos críticos o teatro sempre reage. Foi assim durante a Ditadura Militar, foi assim durante o período que antecedeu o golpe parlamentar que jogou o país neste momento trevoso em que renascem, com muita força, discursos de ódios de toda ordem. Por outro lado, com a pandemia, o teatro sofreu o golpe de não poder se encontrar fisicamente com o público. Claro que a internet e as mídias sociais são importantes, e é preciso explorar as potências que esses mecanismos nos oferecem. Como você avalia este momento em que vivemos?

Somos criativos, resilientes, adaptáveis. Entendo que estamos reavaliando a presença. É possível que o encontro se dê mediado integralmente pela tecnologia? Entendo que agora estamos criando essa terceira via, que estamos a pleno vapor na investigação desse novo suporte. Acredito que nem todo espetáculo seja “versionável” para esse novo módulo que estamos experimentando; há resistências para esse trânsito de linguagem que podem ser extenuantes, ainda mais quando feito compulsoriamente, mas penso que estamos criando uma nova via e que devemos investir em trabalhos pensados para ela. Novas pandemias podem acontecer, guerras, desastres naturais, o distanciamento pode ser o recomendado ou o isolamento decretado, em outros momentos. Não vamos parar de criar por isso. Artista é que nem planta que nasce na calçada, toma água do bueiro e cresce arrebentando o concreto.


Gostaria que você falasse sobre a atriz-espectadora. Existe algum trabalho que tenha marcado sua experiência nesse sentido? Qual? E o que ele lhe provocou?

São muitos, alguns dos quais nem me lembro do nome... lembro cenas, momentos, atuações. Há trabalhos que eu vejo e ficam reverberando por tanto tempo... e só depois de anos consigo elaborar a importância e o impacto daquela obra em mim. Percebo que tenho tendência a me engajar mais quando a encenação assume o público, quando não o subestima, quando prima pelo afeto legítimo.


Manter uma companhia de teatro num estado como o nosso, que dispõe de uma política pública para o setor cultural bastante deficitária, exige muito esforço. Você produz, atua, elabora projetos e tem, também, uma grande experiência como atriz no audiovisual. Como consegue conciliar tantas funções?

Sempre acho que não consigo. Sofro de culpa pouco intermitente e um autoflagelo menos esporádico do que eu gostaria. Com a maternidade é inevitável o agravamento desse quadro. Ela chega com uma mochila pesada pra caramba... estou no exercício de aliviar essa carga. O que não é fácil em uma sociedade que exalta, e até romantiza, a mulher guerreira e forte.


Se tivesse que definir o que é o teatro e qual é sua função dentro de uma comunidade, o que diria?

Ainda bem que eu não tenho... (risos). Não me sinto confortável em definir e determinar algo tão imenso. A arte é artigo de subsistência, para quem vive do ofício de artista em mais de um nível (material, criativo, de consciência). Como já disse Nina Simone, podemos, como artistas, refletir o nosso tempo. O que inclui nos posicionarmos. Mas ninguém é obrigado. O teatro não é obrigado a nada. Existe e resiste porque sua gênese é o encontro. E aqui estamos.


O que deseja e o que espera para os próximos anos?

A descoberta da vacina e a eleição de um governo progressista (risos). Que sigamos combativos, mas que aprendamos a nos articular melhor. Mais notícias boas que ruins. Disposição para seguir trabalhando e vivendo. Encontros carinhosos e intensos.





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