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ENTREVISTA COM JOSIANE GEROLDI




Logo na sua primeira resposta, Josiane Geroldi nos revela seus começos com o teatro através dos Centros Artísticos de Cultura Popular: “foi ali que experimentei através dos jogos teatrais e de muita brincadeira as primeiras noções de corpo, voz e poesia (...) E foi brincando de ser outras e outros que comecei a me entender como pessoa (...)”. Esses inícios brincantes permanecem ainda muito firmes e densos na atriz e contadora de histórias Josiane Geroldi (talvez essa separação seja uma categorização inútil). Nesta entrevista, ela nos conta de seus percursos no teatro catarinense, sua importante pesquisa sobre a oralidade e como isso resultou na Cantacausos, companhia de teatro dedicada a espetáculos de cunho popular e fortemente calcada na oralidade advinda da região oeste de Santa Catarina. Além disso, Josiane fala sobre o impacto da pandemia de Covid-19 sobre o fazer teatral e, também, reflete sobre como as questões tecnológicas estão afetando a contação de histórias. A certa altura, ela também nos diz de forma assertiva: “contar e ouvir são exercícios de confiança”. Ouçamos, portanto, em confiança, o que nos tem a dizer uma das grandes artistas catarinenses da atualidade.


Você iniciou seus estudos no teatro no Grupo de Teatro Expressão Universitária da Unochapecó - GTEU, no final dos anos de 1990, sob a direção do Clodoaldo Calai. Pode nos falar um pouco sobre essa experiência?

Antes do GTEU, preciso falar sobre os Centros Artísticos de Cultura Popular, projeto da Fundação Cultural de Chapecó/SC — criado durante a administração da Frente Popular (1997-2004), que desenvolvia oficinas artísticas de teatro, música e dança nos bairros e periferias da cidade. Foi na escola pública onde cursei a Educação Básica que tive conhecimento do projeto e, com incentivo de uma professora de artes, fui matriculada na oficina de teatro do projeto em 1997, quando tinha 11 anos. As aulas eram ministradas duas vezes por semana, e foi por meio delas que experimentei através dos jogos teatrais e de muita brincadeira as primeiras noções de corpo, voz e poesia. Dedicávamo-nos a brincar de cena através de esquetes curtas que muitas vezes nem chegavam a ser apresentadas ao público. E foi brincando de ser outras e outros que comecei a me entender como pessoa nas relações com os colegas de curso e nos afetos com os professores do projeto. Participei das oficinas do CACP entre 1997 e 2001 e, neste último ano, uma artista/educadora/fundamental assumiu as aulas de teatro do projeto — Maria Teresa Piccoli transformou a nossa turma de veteranos em um grupo de teatro. Montamos o primeiro espetáculo com o texto de Pedro Bandeira, O Fantástico Mistério de Feiurinha e fizemos a nossa primeira estreia com o Grupo de Teatro Amador Megafone na Goela, em 2002. Maria Teresa era atriz do GTEU – Grupo de Teatro Expressão Universitária e foi ela quem me levou para conhecer o grupo universitário ainda em 2001. Como ainda era adolescente, fiquei os 4 primeiros anos participando dos treinos com os atores, assistindo aos ensaios, escutando atenta e auxiliando nas montagens para as apresentações. Em 2004, voltei ao projeto da fundação cultural como estagiária e compartilhei o que aprendi assumindo as aulas de teatro com turmas em projetos sociais nos bairros. Em 2005, pelo GTEU, pude participar da montagem e processo de pesquisa do espetáculo Espolium – uma criação coletiva que investigava as relações do espaço cênico a partir de fragmentos de textos escritos pelas atrizes Josiane Geroldi, Mariane Kerbes, Lisiane Kerbes e Priscila Fontana, com direção de Clodoaldo Callai. Pelo grupo ainda atuei nos espetáculos O Amor é uma Falácia, texto de Max Schuman (2006 a 2009). Neste mesmo período ingressei no Curso de Letras da Unochapecó e montamos o espetáculo Adélia (2008) – espetáculo construído a partir de colagens de textos da escritora Adélia Prado. O GTEU foi base fundamental para muitos artistas e produtores culturais do Oeste de diferentes gerações e, por ser extensão da Unoesc, hoje Unochapecó, e aberto à comunidade, muitos integrantes, como eu, tiveram a oportunidade de ingressar antes mesmo de iniciar os estudos na academia. O GTEU foi estruturante pelo trabalho e pela criação em grupo, mas foi especialmente base para a minha formação humana e de caráter. Tive a oportunidade de conviver com pessoas incríveis, generosas e que me apresentaram referências, artistas, linguagens que operaram como alargadores de horizontes no início da minha jornada acadêmica e como atriz. O projeto de extensão do GTEU foi suspenso durante a Pandemia da Covid-19 e não há indícios de retomada das atividades.



Tem Coroa, mas não é rei (2014). Foto de Angelica Luersen.


Por falar em pandemia, como foi para você se adaptar às exigências das apresentações virtuais, já que sua proposta artística é bastante intimifta e pressupõe uma comunhão, uma ligação direta com o espectador/ouvinte?

Todo o período foi uma busca sobre o que dizer, como dizer, sem ter muita certeza para quem e aceitar que maior do que nosso lugar confortável do fazer estava e ainda está a nossa oportunidade de dizer, tocar e contar para a nossa gente. Sendo este sobretudo o nosso compromisso como artistas e profissionais da cultura de dizer ao nosso tempo e às ações contínuas de manutenção e vínculos com a nossa comunidade de ouvintes. Recriamos espetáculos para o formato de vídeo e também criamos repertórios novos especialmente para dialogar com o período. Foi assim que nasceu a série de vídeos “Histórias para criar coragem” e a série “Sonhos para adiar o fim”. Como artista, me lancei às necessidades do momento e creio que tenha experimentado todas as ferramentas possíveis de interação remota: contei histórias por vídeos, salas de reuniões on-line, lives, chamadas de WhatsApp, podcast… Terminei sessões on-line de narração de contos me sentindo viva e inteira e outras completamente perdida e em dúvida sobre o que estávamos fazendo e sobre as histórias que precisávamos contar agora. Entre tantas referências e leituras que me encorajaram para atravessar o período, compartilho um pequeno trecho do artigo de Félix de Azúa (2011), intitulado “O Artista”, que diz assim: “Eles sabiam que sua tarefa não lhes pertencia, mas que era fruto de um pacto coletivo. Todo o conjunto de presos, no vagão, era a força que levantava e sustentava o vigia, e o grupo inteiro era o que aceitava ou rejeitava suas observações. As visões e os relatos não eram, portanto, fruto de seu caráter ou expressão de seu espírito, mas uma relação efêmera e instantânea, um acordo compartilhado por vários, por muitos ou por todos, sobre a verdade do que aparece em cada momento.” Essa ideia do pacto coletivo, a continuação do fazer e os ecos das escutas sobre o que criamos nos ensinou muito, aprendemos e descobrimos novas ferramentas de trabalho que agora fazem parte do nosso cotidiano de criação e produção, e sobretudo reafirmamos que a arte se dá no encontro. Fizemos o que foi necessário ser feito. Enquanto escrevo a pandemia ainda não acabou, mas com vacina e medidas de segurança já voltamos a colocar a nossa energia no nosso lugar de realização, que é o palco, os quintais, as praças e bem perto das gentes.


Ainda sobre pandemia e teatro, pode nos relatar sua experiência como público? Como foi, para você, do ponto de vista da recepção, assistir ao teatro nesse formato?

Procurei exercitar a escuta e entrar em comunhão com as buscas e as formas. Aprendemos muito na partilha dos processos de criação e experimentação de outras companhias; em algumas sessões consegui me conectar de modo a produzir sentidos e em outras apenas passei pela imagem ou pelo áudio. Criar ritos domésticos para assistir aos espetáculos foram caminhos que proporcionaram melhores experiências de recepção das criações, apagar as luzes, utilizar fones, isolar-se no quarto. Confesso que não pude assistir tanto o quanto gostaria e tive oportunidade, já que os nossos próprios trabalhos de criação para este formato também nos consumiram os dias e as noites. Fiquei com a sensação de que é possível acessar um lugar de afeto pelo vídeo, mas exige que nosso corpo esteja condicionado para a audiência e a leitura da obra audiovisual, tanto quanto em uma sala de teatro ou de cinema. Talvez este tenha sido um grande desafio para as plateias; o ambiente familiar e doméstico nos desvia a todo tempo para necessidades corriqueiras e a fruição se dá aos bocados.



Foi Coisa de Saci (2015). Direção: Josiane Geroldi. Foto de Camila Almeida.


Josiane, em qual momento você foi tocada pela oralidade? Como surgiu o interesse pelas histórias das gentes simples, das vidas narradas, digamos assim, fora do que se convencionou chamar de grande literatura e do teatro tradicional?

Ainda no GTEU, o grupo também trabalhava com núcleos de montagens e, em meados de 2002, iniciou um trabalho de pesquisa e escuta das comunidades ribeirinhas para coletas de histórias sobre o rio Uruguai. Essas foram as minhas primeiras experiências de escuta e de visitas nas comunidades do interior. Embora não fizesse parte do núcleo de montagem daquele trabalho, participei de algumas saídas de campo para coletas de histórias e foi aí que fui tocada pela paisagem, linguagem e pelas histórias da nossa gente. Mais adiante, no curso de Letras, fiz estágio como contadora de histórias no laboratório de leitura Literatório, e a temática de pesquisa daquele ano era a Cultura e os Contos Populares Brasileiros. Neste período, paralelo às atividades acadêmicas e do GTEU, montamos o Grupo de Contação de Histórias Contarolar (Josiane Geroldi, Maria Teresa Piccoli e Camila Miotto) e trabalhamos com a montagem de alguns trabalhos de contação pautados nos contos populares do Brasil. Retomei o trabalho de pesquisa e escuta dos causos em 2008 para a escrita do meu trabalho de conclusão de curso em Letras. As disciplinas de literatura oral e antropologia foram fundamentais para o levantamento do problema de pesquisa. Sob orientação das professoras da Antropologia Dra. Adiles Savoldi e Dra. Arlene Renk, iniciei a minha própria busca e investigação sobre os personagens recorrentes no imaginário social das comunidades caboclas no Oeste Catarinense. Primeiro acessando as pesquisas que já haviam sido realizadas na região para a construção do inventário da cultura imaterial cabocla (material disponível e salvaguardado pelo CEOM – Centro de Memória do Oeste) e depois realizando as minhas próprias saídas de campo para coleta de material. Quando conclui o curso de Letras e finalizei essa parte da pesquisa, fundei a Contacausos (2010) com o objetivo de criar a partir do material coletado na pesquisa acadêmica e dar continuidade aos meus estudos sobre narrativa oral, imaginário e a cultura popular da região. De certa forma, a companhia tornou-se ponte entre a pesquisa acadêmica e a devolutiva que eu gostaria de dar para as comunidades, transformando o material coletado em espetáculos de narração artística.


A Cia. Contacausos foi fundada em 2010 e nestes quase doze anos de atuação já construiu sólida identidade estética. Em Nem Te Conto ou a Noiva do Diabo, você trabalhou com o Willian Sievert, da Trip Teatro; em Visagem com o Jefferson Bittencourt, da Persona Cia. de Teatro; em Vozes VivasHistória de São João Maria com o Max Reinert, da Téspis Cia. de Teatro. Como foi a experiência de trabalhar com grupos com estéticas tão distintas?

No processo de criação dos espetáculos da Contacausos, costumo partir de duas perguntas propostas por Regina Machado na obra Acordais – Fundamentos Poéticos da Arte de Contar Histórias: “História, o que você tem para mim? E o que eu tenho para essa história?” Como costumo criar a partir de temáticas, primeiro seleciono as narrativas que gostaria de contar e vou descobrindo quais são as camadas sociais, culturais, ancestrais da história ou das versões de um mesmo conto que selecionei para trabalhar; neste ponto a história me responde o que ela tem para mim. A segunda questão é sempre a mais trabalhosa e divertida, que é descobrir o que é que a narradora tem para contar essa história. E é nesse ponto que me desenvolvo como atriz e narradora. Descubro o que me falta e busco em parcerias o caminho para os modos de dizer. Quando me falta a técnica, olho ao redor e identifico quais são os artistas/profissionais que tem pesquisas naquela forma ou linguagem que eu gostaria de aprender e desenvolver para contar aquela história do jeito que ela está me pedindo para ser contada. Quando iniciamos a montagem do espetáculo com a história da Noiva do Diabo, meu parceiro de trabalho Marcos Schuh, que é escultor em madeira, criou vários objetos a partir da narrativa. Já conhecíamos o trabalho do Willian Sievert como umas das referências no estado em teatro de animação e o convidamos para nos auxiliar com a direção de cena e o trabalho com a animação dos objetos que havíamos criado para a história. Tudo o que aprendi com o Willian nos dias que estivemos juntos continua reverberando toda a vez que coloco a mão em um objeto na cena em qualquer trabalho que eu faça. Visagem (2013) foi o primeiro espetáculo que partiu especificamente dos relatos coletados na minha pesquisa acadêmica. Eu fiz um recorte dos causos de assombração e medo, e na busca na forma de contar, conheci o trabalho do Jefferson Bittencourt através dos espetáculos da Trilogia Lugosi com o Renato Turnes e da Galinha Degolada da Persona. Em todos os trabalhos que vi, me chamava muito a atenção a forma como luz, som e interpretação criavam atmosferas que conduziam o público a tensões. O medo é uma criação no imaginário do espectador, assim como acontece nas histórias. Conversei com o Jefferson e apresentei a minha pesquisa. De pronto, chegamos no acordo de que era preciso contar aquelas histórias com muito cuidado e criando uma poética que enaltecesse os narradores tradicionais regionais e que de maneira alguma colocasse aquelas experiências no lugar da brincadeira e da jocosidade. Visagem foi um trabalho que me fez recriar a voz narrativa, sustentar o tempo com silêncios mais do que com palavras e aprender luz e som como partes da mesma narrativa. O espetáculo Vozes Vivas – Histórias de São João Maria também é recorte da pesquisa e umas das temáticas das quais mais tenho me dedicado desde o início do trabalho com a Contacausos. Mais uma vez eu tinha muitas histórias, muitas camadas e o desejo profundo de criar um espetáculo que representasse com carinho e cuidado a fé e a luta deste povo. Pensei que seria interessante neste trabalho utilizar as imagens da pesquisa, de modo que os vídeos, fotos e áudios pudessem criar pontes para as imagens do lugar, mas também dar voz e corpo aos narradores tradicionais. Desejamos que o público pudesse conhecer a imagem e as vozes de quem havia nos contado as histórias. Neste processo, convidamos o ator e diretor Max Reinert, da Téspis, de Itajaí/SC, para assumir a direção geral do trabalho e nos ajudar a levar os narradores caboclos para a cena através da projeção digital e as técnicas de edição de projeção mapeada. Embora todos os diretores que trabalharam conosco tenham pesquisas e estéticas muito distintas em suas companhias, o trabalho de todos eles sempre foi muito cuidadoso com a nossa pesquisa e desenvolvimento de voz e linguagem. Estabelecemos diálogos de criação. Por fim, preciso dizer que, em nossos processos de criação em narração artística, estamos o tempo todo buscando exercitar a voz enquanto linguagem poética, e recriando a todo tempo a forma e as possibilidades de criar estas pontes entre o velho e o novo, a tradição e a inovação, pensar e recriar tendo sempre como ponto de partida a palavra, as imagens e a sabedoria do povo.



Visagem (2015). Direção: Jefferson Bittencourt. Foto de Louis Radavelli.


Sim. E você consegue chegar neste lugar em que a voz se instaura como linguagem poética, aliás, lugar que Paul Zumthor, em seu livro Performance, Recepção e Leitura, reivindica à palavra e à oralidade. Gostaríamos de saber um pouco sobre as referências teóricas que são fundamentais para você?

Quando iniciei a pesquisa, ainda no curso de Letras, tive a feliz oportunidade de ser orientada por duas professoras da antropologia, as profas. Dra. Adiles Savoldi e Dra. Arlene Renk. Por aí pude ampliar os conceitos de cultura, narrativas orais, imaginário social e patrimônio imaterial, e ainda hoje essas são as leituras que fundamentam o pensamento para a criação dos projetos de pesquisa e criação dos espetáculos. Poderia citar Walter Benjamim, Denys Cuche, Clifford Geertz. Nos estudos sobre a narração de histórias, Luís da Câmara Cascudo, Regina Machado, Gislayne Avelar Mattos, Silvio Romero, Hampaté Bá, Joseph Campbell, o próprio Zumthor e Peter Brook e tantos outros que nos fazem criar novas perguntas sobre o fazer. Ainda que a teoria e a academia sejam fontes fundamentais para os nossos estudos, é preciso destacar aqui a teoria da terra e tudo o que aprendi sentada na varanda das casas bebendo mate amargo com os caboclos. Sobre isso, Hampaté Bá, no artigo “A tradição viva”, traz uma imagem potente sobre o trabalho de pesquisa que eu também gostaria de alcançar: “Para descobrir um novo mundo, é preciso saber esquecer seu próprio mundo, do contrário o pesquisador estará simplesmente transportando seu mundo consigo ao invés de manter-se à escuta.” E citando Tierno Bokar, “se queres saber quem sou, se queres que te ensine o que sei, deixa um pouco de ser quem o que tu és e esquece o que tu sabes”. Seguimos com um olho na teoria e o resto do corpo conectado nos modos de dizer, expressar e lutar da nossa gente. Essas têm sido, também, as referências fundamentais.



Maracá (2017). Direção: Josiane Geroldi. Foto de Lucas Amado.


A Cia. Contacausos inaugurou sua sede em 2018 com o projeto Nossa Maloca – Sítio Cultural. É um projeto que abriga apresentações, oficinas, encontros, debates e, sobretudo, de convivência. Quais sonhos perpassam esse espaço incrível?

Depois de um tempo visitando a casa das pessoas, fui percebendo que sempre que eu queria escutar histórias precisava ir até as áreas rurais, ali onde a experiência da vida ainda caminha com o pé na terra e a noite ainda faz nascer imagens e sons no escuro do mato. Comecei a nutrir o desejo de mudar e construir um lugar onde as histórias pudessem ser contadas bem perto da natureza, bem perto do lugar onde elas nascem. Minha vontade era poder colocar as crianças na roda para escutar os velhos, acender fogueiras e ampliar a minha própria experiência de vida na relação com as comunidades, com a terra, a noite, o mato e as histórias que eu contava. Mudei para a área rural de Chapecó em 2015 e desde então tenho empregado todas as minhas energias criativas, colaborativas e financeiras na construção deste lugar que hoje acolhe a Sede da Cia. Contacausos e também a Sede do Instituto Cultural Nossa Maloca – que é uma associação de artistas e produtores culturais de Chapecó. Conseguimos realizar as primeiras experiências artísticas abertas ao público em 2018, depois que estruturas mínimas para o conforto de artistas e público estavam erguidas. Hoje, a Nossa Maloca já é um lugar possível de criação, experimentação e fruição artística na natureza. Não temos as estruturas ideais para um equipamento cultural, mas temos possibilidades de criar e recriar as relações entre arte e espectadores através do encontro. Vivemos em uma terra árida de espaços para apresentações, e durante muito tempo estivemos, de certa forma, reféns das instituições públicas e privadas para apresentar nossos trabalhos. A Maloca nos possibilita o encontro com as plateias e a liberdade para realizar as ações de forma independente.


Além de fazer arte e lutar por utopias e heterotopias, como o espaço espaço cultural criado por vocês, o que mais pode fazer a arte e o artista para atuar como força contrária a tudo que estamos vivendo em nosso país?

O acesso à cultura e a experiência artística são direitos fundamentais. Movemo-nos para proporcionar às comunidades o acesso a projetos e apresentações das mais variadas linguagens e temos trabalhado para que aquilo que é proporcionado em nosso espaço cultural possa promover a cultura de paz, o pensamento crítico que auxilie na transformação dos modos de olhar, perceber e reconhecer-se neste território oeste. Fazer, criar e mover-se já são por si só forças contrárias aos silenciamentos, sucateamentos e descasos que vivemos. Recriaremos a todo tempo as formas de fazer, viabilizar e existir. Estamos com Ailton Krenak e as suas Ideais Para Adiar o Fim do Mundo, quando ele diz: “O tipo de humanidade zumbi que estamos sendo convocados a integrar não tolera tanto prazer, tanta fruição de vida. Então, pregam o fim do mundo como uma possibilidade de fazer a gente desistir dos nossos próprios sonhos. E a minha provocação sobre adiar o fim do mundo é exatamente sempre poder contar mais uma história. Se pudermos fazer isso, estaremos adiando o fim." E para poder contar mais histórias e alcançar as comunidades, estamos organizados em forma de coletivo através da Associação Instituto Cultural Nossa Maloca, assumindo cadeiras no conselho de cultura e participando ativamente na luta pela estruturação e aplicação das políticas públicas na região, em Santa Catarina e no país. A luta pelo acesso e o direito se dá, também, na esfera política.


Poderia nos falar com mais detalhes sobre esse seu processo de ouvir as histórias nessas comunidades rurais. Como se dá esse processo de se aproximar, de conquistar a confiança. Há algum intermediário? Você faz um mapeamento prévio? Conta com o acaso?

Embora a pesquisa tenha nascido na universidade, e a academia continue sendo referência para os métodos e as abordagens práticas, preciso dizer que sentar nas varandas das casas para ouvir os caboclos do velho Oeste Catarinense tenha ensinado a tal da “escuta descalça”. Precisamos tirar os sapatos para entrar na casa das gentes e se colocar nesse ambiente íntimo de partilhas de memórias. E no trabalho prático de escuta e compilação de causos, quase sempre a prosa começa do lado de fora da casa; antes de entrar nas memórias narrativas e afetivas é preciso falar sobre a chuva, importâncias de geada, levar uma semente crioula para troca, muda de flor, a vaquinha nova que nasceu, o riacho que secou, a situação da estrada de terra, beber várias cuias de chimarrão, lua boa de plantar, lua boa de colher, simpatia de São João, reza e foto de São João Maria. Chegar pela indicação de um vizinho ajuda a chegar mais perto da varanda e quem sabe ser convidado para entrar. Entrar é a graça! Ter a permissão para a entrada pede essa escuta sensível, com as plantas dos pés descalços para poder sentir e caminhar com os moradores da casa por qualquer assunto, queremos ouvir aquilo que está na verdade da memória do narrador. Contar e ouvir são exercícios de confiança. Pensamos então em pesquisa mais como exercício de investigação, escuta, observação da linguagem do que do ponto de vista da análise e do registro acadêmico. Essa investigação que é mais afetiva do que sistêmica também nos norteia na criação e nas escolhas dos modos, construção de climas, ritmos, escolhas estéticas e performances narrativas. A pesquisa no fazer da Contacausos é uma caminhada descalça: pele e terra. Em sua grande maioria, as visitas acontecem por indicação de alguém. Dificilmente chegamos pra bater em uma porta sem ter um contato anterior ou alguma ponte de alguém conhecido que nos tenha sugerido estar lá. É preciso estar sempre disposto e atento aos narradores que encontramos pelo caminho. Já tive experiências de escuta e coleta de causos com as merendeiras das escolas em que fui apresentar espetáculos, ou fui guiada por alguma professora até a casa de um vizinho da escola que contava causos. Estar à disposição e deixar claro que a escuta nos interessa sempre nos leva até os narradores, especialmente quando desenvolvemos projetos e apresentações nas comunidades rurais e dos interiores. Penso que um escutador/pesquisador precisa viver em um estado de escuta ativa e de percepção das pessoas. Sempre que termino uma conversa pergunto pra aquela narrador (a) se ele conhece mais alguém que conta causos e histórias, onde essa pessoa mora, como é possível encontrá-la, e assim vamos tecendo a teia.



Nem te Conto (2013). Direção: Willian Sieverdt. Foto de Mariane Kerbes.


O avanço tecnológico, a internet, os celulares, um predomínio constante da imagem, do texto curto tem afetado a contação de história?

Sim. Como já nos disse Walter Benjamim, se a arte da narrativa é hoje rara, a difusão da informação é decisivamente responsável por este declínio. Cada manhã recebemos notícias do mundo todo e no entanto somos pobres em histórias surpreendentes”. Ele nos fala ainda que as experiências estão em baixa. A vida foi ocupada pela informação e pelas imagens prontas; passamos horas no celular girando a barra de navegação do feed de notícias e deixamos de viver a aventura que está lá fora. Da mesma forma que as relações de conversa, escuta e partilha no âmbito familiar também são afetadas cotidianamente pelos aparelhos que preenchem o tempo, a imaginação e a própria leitura do mundo que nos cerca. Esse é um caminho sem volta, e essa também é uma das razões pelo grande crescimento da linguagem da narração de histórias no Brasil e no mundo. Se as relações estão cada vez mais vazias, as experiências estão em baixa, caberá ao artista da palavra proporcionar as experiências de escuta e de passeio pela imagem interior, potente e íntima que a história narrada proporciona dentro de quem escuta. É fundamental para o desenvolvimento humano, para a inteligência emocional e cognitiva que a criança e o adulto possam imaginar e projetar-se na narrativa que escuta. Contar histórias é mais sobre quem escuta do que sobre quem conta. É um exercício coletivo de enxergar-se por dentro, silenciados dos barulhos da pressa e da agitação cotidiana. Escutar um conto ainda coloca todos no mesmo lugar de suspensão do tempo e por isso e cada vez mais torna-se uma linguagem artística urgente no nosso tempo.

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