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ENTREVISTA COM LUANA RAITER





“Ainda me sinto iniciando a carreira” nos diz, a certa altura desta entrevista, a experiente Luana Raiter. É nessa constante aprendizagem que ela nos fala de sua trajetória, sobretudo, no ERRO Grupo. Entendemos os diversos processos criativos que marcaram algumas peças do grupo, inclusive da recente experiência Balcons de Brossa, realizada em Barcelona, em 2020. Nesta entrevista, Luana também nos apresenta suas visões éticas, políticas e artísticas, principalmente, sobre como o teatro pode atuar nesses campos do conhecimento humano e também sobre como fazer do teatro, em tempos pandêmicos, uma força de mudança. Por isso, a atriz que continua aprendendo, diariamente, os meandros de sua profissão, também nos ensina muito nessa entrevista.


Poderia nos falar sobre a sua trajetória artística e de seu trânsito inicial entre escrita, pintura, até chegar ao teatro?

Bom, eu sempre gostei muito de desenhar, fazer esculturas, escrever poemas e contos. Dava muito prazer criar coisas: ver um tronco tomar outra forma, uma tinta se misturar à outra e a transformação de pensamentos e imagens em poesia, contos, mas hoje, com uma certa idade, posso afirmar que minha trajetória artística iniciou realmente com o teatro. Prestei vestibular para artes cênicas por incentivo de minha mãe, que me chamou a atenção para o fato de que no teatro poderia desenhar e construir cenários, ou escrever dramaturgias e, também, que poderia pedir transferência para o curso de artes plásticas, caso não gostasse. Não foi o caso. Realmente o campo do teatro, especialmente do teatro expandido, contemplou esse meu lado das artes visuais e da escrita. Fui mordida pelo tal bichinho do teatro, o prazer de criar situações, gerar experiências.


Você é uma das fundadoras do ERRO. Como foi esse processo de se pensar e pôr em prática o grupo? A rua e a cidade já figuravam como uma preocupação do grupo lá no início ou isso foi se desenhando paulatinamente?

Pois sim, fui uma das fundadoras legais do grupo, junto com a Priscila Zaccaron, o Luis Beltrão, o Juarez e o Pedro Bennaton, lá em 2001. Mas o ERRO, assim como qualquer grupo com um projeto de pesquisa a longo prazo, está sempre sendo fundado e refundado a cada período de sua existência pelas pessoas que o fazem existir, que aportam transformações aos modos de fazer e pensar a pesquisa. A Julia Amaral, a Ana Paula Cardozo fundaram o grupo em um momento, o Michel Marques, o Luiz Henrique Cudo e a Sarah Ferreira também e continuam nessa missão de dar-lhe corpo. Que é o importante afinal. “Fazer” grupo tem sido uma das grandes experiências de minha vida, um desafio, além de ser mãe, claro. Aprender a pensar em grupo, sem deixar de lado os desejos particulares de cada pessoa e chegar a pontos de comum acordo não é uma tarefa fácil, porém é muito engrandecedora. As dinâmicas de trabalho ao longo desses 20 anos foram muito diversas, as oportunidades e as faltas de oportunidades também. Entender que um grupo não é uma empresa, pois não oferece garantia econômica alguma, e que isso afeta obviamente a possibilidade de tempo disponível de cada integrante, por exemplo. Como trabalhar profissionalmente em um país que não oferece meios de sustentar artistas? E como manter um grupo como o ERRO ativo nestas circunstâncias? Definitivamente o grupo está em um constante processo de fundação, pois trabalhar com arte é uma batalha, estamos sempre flertando com a extinção. Quando o grupo foi fundado, tínhamos muito claro que não queríamos delimitar nossa linguagem a um campo específico, teatro, artes visuais, ou até mesmo performance. A rua nos parecia um local interessante, assim como fazer teatro dentro de sala de exposições, ou performances em elevadores, então sim, foi se desenhando paulatinamente. Conforme fazíamos experiências na rua, queríamos mais. O espaço urbano é fascinante, é um laboratório, um organismo vivo. Um espaço cuja característica singular é que não é composto por uma comunidade específica, mas por uma proliferação de relações pautada sobre os usos, sobre regras morais, mas também de adaptações mútuas, conjunções efêmeras, ora é palco do comércio, ora de campanha política, da igualdade democrática, dos conflitos, das desigualdades. Por fim, é um espaço repleto de estímulos, de contradições e de possibilidades. Claro que há também um resquício das ânsias vanguardistas de aproximar arte e vida, de surpreender, tirar do eixo a rotina cotidiana. Mas é certo que independentemente se fosse em museus, teatros ou na rua, tínhamos e temos muito claro a necessidade de a arte ser menos elitista.



ADELAIDE FONTANA. Curitiba. Festival Nacional (2003)


"Erro" é uma palavra polissêmica, complexa. Qual a importância do errar no teatro, uma arte tão afeita à precisão?


Acho que o teatro é tanto igualmente afeito à precisão quanto à vitalidade. E esse é um equilíbrio muito difícil. Viver a cada função, uma e outra vez as mesmas palavras, os mesmos gestos, sem perder seu frescor vital. A tensão de que o ator possa esquecer essas palavras, que o figurino desprenda, que uma pessoa do público se ofenda, isso é parte do fascínio da arte teatral. Então eu diria que o erro tem um lugar inerente ao teatro. A precisão é saber errar e não perder a cena. Essa tensão é parte do aspecto vivo do teatro, de sua vitalidade. Arrisco dizer que o teatro vem abandonando ao longo do século passado a fixação pela precisão e priorizando a vitalidade, a característica da cena como acontecimento. Claro que não são excludentes — o teatro de Grotowsky — é exemplo, mas também do CPT, do Lume. No caso do trabalho que desenvolvo com o ERRO, temos uma preocupação maior com a vitalidade da ação; a preocupação com a precisão normalmente está direcionada à execução de uma estratégia para conseguir fazer a ação, e para eleger a problemática político-filosófica que faça sentido de abordar no momento da ação. É um nome polissêmico, você tem razão. Veio ao acaso, um cd player antigo que travou e começou a piscar “ERRO 03” bem no momento quando estávamos definindo o nome. Então, já começou aí nessa pesquisa, foi um encontro, um achado e, pensando agora, nossa metodologia de criação na rua é pautada assim: o que podemos encontrar no espaço urbano e o que vem ao nosso encontro. A conhecida missão dos surrealistas de mostrar o quão estranho e exótico é o familiar, a vida-cotidiana.


Em 2013, numa entrevista, você disse que “um ator não deve só atuar”. Quase uma década depois e com a experiência aterradora que estamos vivendo, essa frase se torna ainda mais urgente. Você poderia nos falar um pouco mais sobre isso? O que pode fazer um ator, além de atuar, em tempos obscuros?

Não estou certa do contexto no qual falei essa frase, mas certamente me referia ao trabalho de teatro de grupo, de todas maneiras eu “assumo” a frase para além de sua referência ao trabalho em teatro de grupo (risos). Tentarei me explicar: uma atriz de teatro, periférico, fora dos grandes circuitos artísticos, de cidades que não têm teste de elenco por exemplo, tem que assumir diversas funções para conseguir chegar a “ser atriz”. Uma atriz, para conseguir atuar hoje, precisa produzir um vídeo-book, ou um portfólio, ou escrever um projeto para tentar ser aceito por um teatro ou por um edital, e mesmo se o foco é fazer teatro de rua, saber como lidar com a regulamentação do espaço urbano, que está cada dia mais burocrática. Peter Brook disse que um diretor só o é se houver atores que acreditem no trabalho dele e que se disponham a trabalhar com ele/ela, coisa que hoje com o uso de dispositivos cênicos já não é uma verdade, vide o teatro de Roger Bernat ou de Rimini Protokoll, por exemplo. Nem diretores precisam mais de atores!!! Brincadeira à parte, atrizes, diretoras e artistas em geral, no mundo em que vivemos, são obrigadas a virarem produtoras de seus trabalhos. Não tem muita escapatória. No caso de uma atriz de teatro de grupo (normalmente com uma produção precária), a utopia de “só atuar” é bastante distante também. Ainda que tenha a sorte de alguém no grupo assumir a produção dos projetos, provavelmente terá que carregar escada, passar seu figurino, ajudar a montar o cenário, enfim, são muito raros os casos em que a atriz se dedica exclusivamente a atuar. E mesmo que isso seja triste, pois é resultado de uma precarização do trabalho do artista, que nestes tempos obscuros sofreu ainda mais, também é engrandecedor, pois você entende todos os processos de criação e execução. É bonito, pois é um exercício do faça-você-mesma, descubra como, ajude o outro, juntas conseguimos. As atrizes se tornam muito mais conscientes de toda a rede que está ao redor da cena, assim como se envolve nos diversos âmbitos da pesquisa estética. Enfim, sei que já falei muito, mas queria adicionar outro aspecto que me ocorre desta frase “o ator não pode só atuar”: o ator, ou a atriz, não pode só atuar no palco, tem que atuar no campo político direto. Somos um setor que depende muito das políticas de incentivo do governo, ressoamos em nossas produções os efeitos dessas políticas (seja no sentido material que viabilizam as produções, mas especialmente no conteúdo das produções) e por isso também a preocupação de nos calar em tempos sombrios. O movimento OcupaMinc é um exemplo disso, outro é o papel dos artistas durante a ditadura militar brasileira.


Churrascão IV (2007). Criação: ERRO Grupo. Foto de Julia Amaral.


As ruas estão cada vez mais inseguras, sobretudo pelo aspecto político. Como o ERRO está encarando este momento histórico?

Sentimos uma mudança radical nas ruas desde a abertura do processo de “impeachment” de Dilma Rousseff, que piorou quando o golpe se concretizou e conseguiram destitui-la do posto. Uma intensificação das fiscalizações do espaço público pela PM e pela Guarda Civil, e abuso de poder nas abordagens. Em nossa estreia de Jogo da Guerra, em 2018, por exemplo, eles nos circularam e nos intimidaram em diversos momentos da ação, mas o pior foi que “atacaram” no final, quando já não havia mais público, literalmente na calada na noite. Fomos surpreendidos pela PM na saída de nosso QG, após a apresentação. Pediram os documentos de todos, gritaram e quando viram que tínhamos todas as documentações em dia e que se tratava de um projeto artístico vinculado a Fundação Catarinense de Cultura, soltaram uma bomba de gás lacrimogênio e nos disseram para ir embora dali. Pedro fez um vídeo chamado “Ciranda das Viaturas”, que está em nosso canal do Youtube, no qual reuniu as imagens das abordagens policiais em nosso último ensaio, assim como da estreia (as que conseguimos filmar) de Jogo da Guerra. Já em 2019, com 24º Debate Público/Jogo Ágora as próprias instituições que estavam apoiando nossa apresentação em Florianópolis ficaram com muito medo de que as repercussões políticas pudessem afetá-las, e, horas antes da apresentação, tivemos que batalhar e assumir a responsabilidade sobre o trabalho para poder realizar a performance. No momento da apresentação, tivemos viaturas policiais nos cercando e nos intimidando ao longo de toda a ação. Foi muito triste. Havíamos realizado poucos meses antes esta performance na principal rua no centro da Cidade do México, também articulados com instituições artísticas, e não tivemos nenhum problema similar. Nesta ação, convidamos o público a discutir política nus, e percebermos como os discursos ganham outro “corpo”. No México tivemos mais de 12 pessoas nuas discutindo; em Florianópolis, ninguém teve coragem de tirar as roupas por completo... duas mulheres muito corajosas expuseram seus seios e isso por si só foi uma tensão geral.



Geografia Inútil (2014). Direção: Pedro Bennaton. Foto: Henrique Saidel.


Além disso, de que forma vocês atuaram na pandemia, que nos impôs um estado que pode ser visto como antítese do ERRO?

A pandemia gerou algo curioso na produção artística. Expandiu, através das experiências on-line, mas também nos fez olhar e viver mais os espaços próximos de nossas moradias. O ERRO tentou usar os dois campos. Fizemos uma série de debates on-line, apresentamos Exercício Para Dias de Chuva: um teste e demos uma oficina on-line. A oficina em especial foi um desafio, mas dos bons. Pois nos fez reorganizar as metodologias de criação, extraindo a essência delas e tentado deslocá-las para esta realidade: um exercício de observação das ruas, para uma observação limitada, desde as janelas dos participantes, que normalmente avançavam para as vidas privadas dos vizinhos, ou se limitavam a uma saída para o supermercado. A improvisação com as espacialidades urbanas para uma improvisação com as observações dos participantes através de um googledocs, por exemplo. Eu e Pedro Bennaton, que passamos a quarentena em Barcelona, por conta de minha bolsa de doutorado sanduíche da CAPES, tivemos a sorte de estar morando em uma praça cuja arquitetura remete aos corrales espanhóis do Século de Ouro e, já nas primeiras semanas de confinamento, foi criado um grupo de WhatsApp com cinco vizinhos da praça. Resumindo, este grupo começou a crescer e todos os dias às 20 horas saímos em nossas varandas para aplaudir os trabalhadores da saúde, ação que virou habitual em toda a Espanha, mas que, com o passar do tempo, era também um aplauso a nós mesmas, nosso comprometimento em ficar em casa, a enfrentar este momento de modo coletivo. Com o passar das semanas, além de aplaudir, os vizinhos começaram a cantar, a dançar, e nos vimos com um grupo de pessoas que ansiavam por “estarem juntos”. Então, eu e Pedro, decidimos fazer uma convocatória teatral ao grupo “da praça”, para saber quem se interessaria em fazer uma oficina de criação cujo resultado apresentaríamos as 20 horas após os aplausos. Assim nasceu Balcons de Brossa, uma intervenção urbana feita para a comunidade de vizinhos da praça, como um corral invertido.


E como se deram as apresentações e os ensaios de Balcons de Brossa? E a recepção? Quais diálogos de visualidades vocês criaram com os poemas de Joan Brossa?

Foi um processo muito peculiar, pois além de não podermos fazer exercícios corporais de criação presencialmente, não nos conhecíamos “de perto”. Eu e Pedro optamos por fazer o processo sem videochamadas coletivas. Assim que fazíamos indagações por mensagens de WhatsApp, enviávamos referências, imagens e fomos desenvolvendo a dramaturgia e organizando os textos e as ações em forma de roteiro provisório a serem experimentados nos ensaios, desde nossas varandas após os aplausos da noite. Não divulgamos as apresentações durante a quarentena para fora do grupo de vizinhos da praça e foi muito bonito de ver como aqueles que não se inscreveram para fazer a montagem, no momento da apresentação, sentiram o ímpeto de participar. Alguns repetiam os textos, outros buscavam em suas casas os objetos que estávamos usando. A impressão que deu era que não tínhamos um público, que todos eram participantes. Nunca havia vivido a experiência de terminar uma apresentação e os próprios atores se aplaudirem com muita emoção, gritando “bravo!” uns para os outros. Quando fizemos a proposta, pensamos em pegar algum autor do Século de Ouro espanhol, mas logo percebemos que eram autores tão estudados e montados na Espanha, que cada vizinha/o tinha uma ressalva diferentes sobre os textos propostos. Assim, decidimos indagar sobre a obra de Joan Brossa, e o interesse foi unânime. O universo brossiano é muito inspirador, prolixo e visual, mas, principalmente, muito ativo, performático e conectado com o trabalho que desenvolvemos no ERRO, assim que ficamos muito felizes com a escolha. As visualidades foram criadas a partir da precariedade: o que todos poderiam ter em casa, o que, dentro das limitações técnicas e materiais, poderíamos fazer juntos naquela situação e, claro, que faziam sentido dentro da proposta. Intercambiamos diversas referências dos objetos-poemas brossianos, poemas e peças teatrais. Logo eu e Pedro fomos trabalhando no roteiro e na seleção dos textos. Chegamos em um objeto-poema em grande escala: uma praça cujas janelas ora mostravam letras, ora panos brancos, ora ações banais do cotidiano, entrecortados por sons de letras. O uso das letras, marca inconfundível no trabalho de Brossa, foi um elemento importante da nossa intervenção, pois fez muito sentido naquele momento de isolamento social: era como se estivéssemos redescobrindo a comunicação, como se as palavras tivessem se destituído de significados, estavam desconectadas, existindo apenas em sua materialidade sonora, soltas no espaço, mas que, ainda assim, por segundos, se encontravam e formavam campos de ressonância. Foi bonito ver como o Balcons de Brossa repercutiu na cidade através do boca a boca e pela difusão dos vídeos da ação na internet e, ao final da quarentena, tanto a prefeitura quanto a Fundação Joan Brossa estavam a par da ação e nos incentivaram a apresentar na festa de Sant Jordi, festa popular da Catalunya, dentro da programação oficial da cidade. Além disso, articulados pela Fundació Tot Raval, contamos com a participação de músicos do Gran Teatre Liceu para integrarem a apresentação. Os vizinhos estavam excitadíssimos de terem suas vozes projetadas por microfones para a praça e uma multidão, totalmente diferente da experiência anterior, extremamente íntima. No Youtube do ERRO é possível ver a diferença entre estes dois momentos da obra.



Escaparate (2008). Direção: Pedro Bennaton. Foto de Julia Amaral


Você disse, com toda razão, que os artistas de grupo, mas não somente eles, estão sempre em risco de extinção. E, também, que estamos, em quase todos os governos, sob ataque e sempre somos olhados com desconfiança. Pelo menos essa é a nossa realidade no Brasil. A que você atribui tanta perseguição e desconfiança que nos devotam?

Bom, como sabiamente coloca o filósofo e dramaturgo Alain Badiou, a arte é uma prática compartilhada entre a subversão e a instituição, entre a passividade contemplativa e a ruptura ativa, entre o Estado e a multidão. Os governos nos olham com desconfiança, pois o trabalho do artista é dar a ver o que existe, mas não é aparente, cria campos de visualização, e isso é perigoso para aqueles que nos querem anestesiados, funcionais e governáveis. Quando Badiou diz que a arte concilia a subversão e a instituição, ele parte do princípio de que existem instituições que entendem o valor e a necessidade da cultura, da arte. O que vimos com o governo do inominável é que ele vem tentando atacar a própria legitimidade da arte.


Você está na Espanha concluindo seu doutorado. O que você está pesquisando?

Pesquiso problemáticas ligadas a práticas artísticas participativas, tanto as que visam criar experimentos sociais quanto as que tentam reorganizar a relação artista-público. A participação se tornou, a partir dos anos de 1960, sinônimo de “atividade política”, uma forma de deshierarquização dos possíveis vínculos entre artista e público, da exploração de uma cena e experiência compartilhada que culminaria em uma maior aproximação entre as pessoas, gerando espaços mais democráticos na arte, abertos ao acaso, de autoria múltipla e mais uma série de coisas que nos levam a pensar em potências políticas destas ações. Minha pesquisa está centrada em localizar as contradições a estas boas intenções da participação, mas também, ao fazer isso, encontrar as potências que elas oferecem. Escolhi fazer esta pesquisa em Barcelona por alguns motivos: Barcelona possui uma discussão efervescente sobre as políticas participativas no campo das ciências sociais, sendo a tal participação cidadã uma política pública amplamente adotada e que, quase sempre, é movida por interesses de um efeito democrático muito mais cosmético do que estrutural, como estratégia neoliberal para viabilizar a governabilidade; também estou aqui pois encontrei nos escritos do antropólogo Roger Sansi sobre as relações entre arte, participação e a noção antropológica de dom pontos muito frutíferos para a análise que queria fazer e, por último, mas não menos importante, pois encontrei nas práticas de dois artistas daqui um uso bastante peculiar da participação nas artes. Uma é a artista visual Núria Güell e o outro é o diretor teatral Roger Bernat.



Carga Viva (2011). Direção: Pedro Bennaton. Foto: Marina Borck


A pandemia jogou todos nós para um mundo virtual, que, sejamos sinceros, tem suas maravilhas e em alguma medida nos colocou em contato, mas, por outro lado, pelo menos para nós, tira muito o calor de uma apresentação cênica? Como tem sido para você assistir aos trabalhos neste período?

A presença física é, para mim, ingrediente essencial para a “periculosidade” do teatro, essa tensão de uma possível “ruptura ativa” que mencionei. Acho que é possível, sim, encontrar modos que causem esta tensão, mas não vi isso acontecer (ainda). É certo que é emocionante ver como artistas se desdobraram para se adaptar a esta nova realidade pandêmica, movidos por uma necessidade de seguir se comunicando por esta linguagem estranha, que é a das artes. Apesar de ver algumas experiências que me emocionaram bastante, acho que devemos, se tivermos que seguir de modo virtual, encontrar modos em que a arte possa reverberar para além das telas, do âmbito privado e das nossas bolhas. Apesar do ERRO ter realizado ações on-line e vivido este momento de isolamento social, além do fato de que vivi e estou vivendo este momento em Barcelona, cujas medidas no combate à Covid-19 foram e são muito diferentes das do Brasil, em junho de 2020, logo após a quarentena, voltamos com ensaios presenciais para a criação de uma obra que estávamos cozinhando antes da pandemia, no hay citas disponibles. Este processo de voltar a fazer teatro presencialmente, mantendo os cuidados sanitários necessários, assumindo as distâncias, as máscaras, e o medo do contágio, foi muito fértil para o próprio trabalho, que lida com as fronteiras, com a migração, com as relações entre corpo e território. Então, por minha experiência, foi e é possível fazer teatro presencial, mesmo em uma pandemia, guardando as devidas restrições, tomando alguns cuidados, sem toque, sem proximidade, mas mantendo o “calor”.


A história do ERRO tem muito a ver com a nossa história, pois acompanhamos o grupo desde A Margem, Carga Viva, enfim, o grupo, como outros, ajudou a nos formar como leitores e espectadores. Uma curiosidade: Você e Pedro estão juntos desde sempre. Como se dá esta parceria?

Difícil responder a essa pergunta, pois minha parceria artística com o Pedro é transpassada por um relacionamento amoroso, no qual, além de criarmos obras, criamos duas filhas, nos conhecemos profundamente. O ingrediente importante, a meu ver, desta parceria tão intensa e longeva, é justamente o fato de que, quase sempre, estamos nos relacionando profissionalmente em um coletivo. Isto é, a parceria não acontece apenas entre mim e ele, mas também com outras pessoas, o que acho extremamente saudável. No caso das elaborações dramatúrgicas dos trabalhos, que é o campo em que costumamos trabalhar como duo, funciona, no meu entender, porque possui uma característica agonística, isto é, nos posicionamos em campos distintos para chegarmos em um objeto em comum. Como brincamos no grupo, eu sou a representante da “associação de atrizes e atores”, percebendo os impactos da dramaturgia no aspecto micro, corporal e relacional, e Pedro, de uma posição distanciada, do trabalho como um todo. Tento me policiar, pois tenho uma tendência a querer “suavizar” as propostas do Pedro; rapidamente me coloco no lugar da atriz e penso nas dificuldades que implicam algumas decisões. Então, essa parceria mais intensa, digamos, funciona, pois temos estas diferenças perceptivas sobre o trabalho. Admito que sempre faço o exercício de questionar o Pedro, e ele a mim, pois tememos, claro, que no momento em que “pensarmos” igual, abrirmos mãos de nossas singularidades, a parceria perderá sua potência.


Hoje, no Brasil, nós temos um inimigo em comum. É preciso combater o fascismo galopante e essa corja que nos governa. Em momentos assim, pelo menos é o que nos parece, o setor artístico e cultural se torna mais coeso. O que fazer para manter isso, também, em momentos não tão críticos?

Bom, eu não sei dizer. Será tão bom poder parar de se preocupar com direitos básicos. Acredito que para manter essa coesão os espaços de encontro e convívio são importantíssimos, para além das assembleias, reuniões de articulação. Ceias coletivas, bailão, piquenique, atividades que não são propriamente artísticas, nem diretamente políticas.


De todos os seus trabalhos qual, na sua percepção, mexeu mais com suas estruturas, suas percepções, enfim, há algum trabalho que tenha produzido alguma marca especial?

Não consigo citar apenas um. Muitos trabalhos me marcaram, cada qual em um momento diferente de minha caminhada. Acho que quando se trabalha com uma pesquisa de linguagem estética, cada trabalho deixa a sua marca, pois possui uma descoberta específica. Mas posso dizer que para mim o Enfim um Líder (2007) foi um marco por muitos motivos: pela investida contra as fronteiras entre realidade e ficção, expandido o alcance das ações da performance (coisa que já havíamos feito em Desvio, por exemplo, mas com o Líder foi muito mais radical), pela dramaturgia composta por uma tabela de ações, com pouquíssimos textos definidos, por sua duração (3 dias, de manhã à noite) e pela doação que o projeto exigiu. Acho que todos aprendamos muito. No aspecto da mistura realidade-ficção, o uso da invisibilidade também foi desafiante. Nos ensaios trabalhamos com a ideia de mentir em vez de interpretar, o que para uma atriz é uma ruptura enorme na lógica do trabalho de atuação, afinal, buscamos uma interpretação verdadeira, sob a crença de que, enquanto todos atuam na vida real sem que outros saibam, o trabalho atoral é o ofício onde a representação é explicitada. A questão ética do Teatro Invisível proposto por Boal é o ponto mais criticado por estudiosos teatrais, e sentimos isso na pele com este projeto. Existe realmente um autoritarismo em criar uma situação teatral que apenas as atrizes e atores saibam que se trata de teatro, mas achamos que a meta maior do trabalho valia a pena. Ir pra rua e manter o discurso treinado, conversar com pessoas diversas, inclusive com conhecidos, sem que as pessoas soubessem ao certo se estávamos representando ou não, foi grande desafio. Um dia reencontrei um amigo de família que não via há muitos anos bem no meio de uma apresentação de Enfim um Líder. Ele ficou preocupadíssimo, pois segui à risca nossos ensaios e tentei convencê-lo da existência e da importância do Líder. Aquele mesmo dia ele ligou para minha mãe para saber “se estava tudo bem comigo”. Hoje, com as fake news e o fanatismo que tomou o Brasil, entendo que este projeto, criado a partir de uma série de exercícios de observação das ruas, foi premonitório da situação que vivemos atualmente, dos modos em que as pessoas são facilmente persuadidas. Outro aspecto deste projeto que me faz mencioná-lo como um marco, foram as condições “materiais” no qual foi feito. Exigiu uma doação de todos os integrantes, quase um “ato de fé”, “devoção”, pois para que o projeto saísse do modo idealmente imaginado, a equipe se sacrificou muito. Com o mesmo orçamento que se costuma pleitear para temporadas de 10 apresentações de peças com duração normal, nós propusemos 10 apresentações de um espetáculo de três dias, totalizando 30 dias, de manhã à noite, que não era cancelado em caso de chuva (afinal, era a chegada de um grande Líder!), com uma série de gastos cenográficos que considerávamos essenciais para transmitir a grandiosidade do evento. E, tudo isso, com uma produção de espaço extremamente exigente. Foi uma saga cujo retorno financeiro foi mínimo. Minha filha tinha menos de dois anos na época, assim que a produção da vida pessoal também foi duríssima.



Enfim um Líder (2007). Direção: Pedro Bennaton. Foto de Julia Amaral


O que você diria, caso tivesse que escrever uma espécie de carta a uma atriz que esteja iniciando sua carreira?

Como responder a esta pergunta? Ainda me sinto iniciando a carreira! Ainda me sinto descobrindo tudo que implica esta opção profissional. O livro de Marília Pêra certamente responderá de modo mais apropriado, mas também o artigo de Décio de Almeida Prado, de 1949, escrito para Cacilda Becker. Neste artigo, ele nos dá pistas importantes, ressaltando para além dos aspectos técnicos do ofício a importância da personalidade de uma atriz, e acho que isso se relaciona com o que comentei anteriormente, sobre esse aspecto amplo do que significa uma atriz que não apenas atue no teatro, mas na vida social. Leia muito, estude, “coloque o corpo” nas lutas, deixe-se afetar pelo mundo e pela vida. Tenha consciência de que cada projeto possui uma posição política e, sobretudo, prepare-se para uma batalha.




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