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ENTREVISTA COM TATIANE DANNA




Tatiane Mileide Danna é desde 2001 atriz e dramaturga da Trip Teatro, importante companhia teatral catarinense, que tem como base a cidade de Rio do Sul, no Alto Vale do Itajaí. Nesta entrevista, ela nos fala de sua trajetória, de seus primeiros contatos com o teatro de animação, bem como do seu processo criativo e da companhia. A atriz nos apresenta um olhar bastante prático sobre o fazer teatral, sobretudo naquilo que envolve o respeito ao público e a sustentabilidade econômica e artística de um grupo de teatro independente.


Qual foi a sua primeira experiência com a linguagem cênica?

Foi na escola, no ensino fundamental II. Eu escrevia e encenava as peças, pois o acesso a textos teatrais era muito limitado.


Você poderia nos falar sobre seu processo de formação artística e sobre o seu processo de criação? Sobretudo esse trânsito que você faz entre teatro e literatura?

Meu processo de formação artística começou na adolescência, no grupo de teatro juvenil do Centro Cultural SCAR, em Jaraguá do Sul. Depois fiz Artes Cênicas na Universidade Regional de Blumenau - FURB, além de cursos diversos (teatro e audiovisual). Em 2001, após estar graduada, fui para Rio do Sul e passei a integrar a Trip Teatro, onde construí também uma relação com o teatro de animação. Sempre gostei de escrever e do universo infantil, e foi o teatro que abriu a possibilidade de ser escritora. Meu primeiro livro, lançado pela Editora Paulus, de São Paulo, foi justamente sobre um dos espetáculos do repertório da companhia: O Velho Lobo do Mar.



Sou lenda sou Maria (primeira versão, 2014). Direção: Tati Mileide. Acervo do grupo.


No documentário sobre os 25 anos da companhia há ênfase em se passar pelas dinâmicas e processos de criação de cada espetáculo. Ali aparece muito o jogo e a centelha que fazem insurgir um novo trabalho. Como foi esse procedimento de olhar pelo retrovisor da própria história?

É um exercício sempre válido. Percebemos o quanto cada processo de criação/montagem nos amadurece, sobretudo os processos compartilhados com outros artistas e companhias. Percebemos também o quanto o caminho para um novo espetáculo pode ser longo (no nosso caso sempre é). São sempre anos desde “a centelha” até a estreia, mas um caminho que traz segurança naquilo que fazemos. Não é à toa que os espetáculos da Trip Teatro têm uma vida tão longa, 25, 15, 10 anos em cartaz e ainda com muito chão pela frente.


Uma das características da Trip é o mergulho em linguagens distintas. O Incrível Ladrão de Calcinhas, O Flautista de Hamelin, Sou Lenda, Sou Maria e SóFridas são exemplos desse mergulho em linguagens muito diversas, mas que têm como ponto seguro a permanência de uma poética, a construção de uma poética. Outra característica da é o cuidado em não esgotar o discurso poético que apresenta. Pode nos falar um pouco sobre esses caminhos da companhia?

Para nós, da Trip Teatro, a técnica está a serviço da história a ser contada. Por isso consideramos o público-alvo, o ambiente, a estética, o texto, a equipe e outros fatores como determinantes para a definição da técnica a ser utilizada. No teatro de animação, as possibilidades são muitas, mas cada técnica tem suas vantagens e desvantagens, e buscamos sempre tirar proveito disso. Quanto a não esgotar o discurso poético, acreditamos que o público merece um espaço para completar, à sua maneira, aquilo que propomos em cena. Isso engrandece a obra e torna cada um parte do processo. A percepção do público sobre a obra pode e deve ser distinta da nossa. É mais sobre a recepção da nossa arte do que a emissão.



SóFridas, 2020. Direção: Sandra Vargas. Acervo do grupo.


O que dispara um novo trabalho da Trip Teatro?

A vontade de contar algo que nos toca. Pode surgir a partir de um texto, uma ideia, uma estética, uma técnica, uma frase, uma lenda.


Você atua tanto na literatura quanto no teatro infantil? Quais são as dificuldades, os cuidados e as belezas de se criar para esse público?

Um bom livro ou um bom espetáculo para crianças tem que ser bom para adultos também. Não precisa ser “infantilizado”. O cuidado maior é o respeito aos pequenos, não só durante a apresentação, citando o teatro, mas antes e depois. Gostamos de receber as crianças na porta do teatro e de estar lá novamente para nos despedirmos. O rito teatral extrapola a cena. As dificuldades são as mesmas de um teatro para adultos, somado o fato de o teatro para infância ser menos valorizado por muitos.


A que você atribui essa desvalorização do teatro feito para a infância, já que ela aparece na academia, no próprio meio teatral, na crítica, enfim, em diversos discursos sobre teatro?

Acreditamos que a cultura para a infância merece um olhar mais cuidadoso, com editais específicos e, quando há esse recorte, com verbas condizentes. Há vários casos pelo país em que as verbas para espetáculos infantis são diferenciadas, sempre abaixo do teatro para adultos. O público, em muitos casos, também precisa reconhecer essa arte como teatro, não como teatrinho. E também os artistas, que muitas vezes veem o teatro para crianças como uma fonte fácil de recursos (mesmo que escassos), e não pela ótica da formação artística, com responsabilidade.


Você trabalha com teatro há praticamente três décadas em Rio do Sul. Ainda que a Trip Teatro circule pelo Brasil e por diversos outros países, o teatro é uma arte com certa identidade geográfica. Pode nos falar um pouco sobre essa experiência com a cidade e com a comunidade?

A Trip Teatro existe há 32 anos, e eu faço parte desde 2001. Sempre tivemos esse olhar para dentro e para fora da cidade. Buscamos a conexão com nossa comunidade como forma de dar sentido ao que fazemos. Atualmente mantemos o “Teatro Embaixo da Ponte”, em Rio do Sul, por meio do qual apresentamos com frequência nossas obras e também criamos as condições para que o público da cidade e região possa ver obras de outras companhias, nacionais e internacionais.


O projeto “Teatro Embaixo da Ponte” é bastante amplo e agrega outras artes. Como e quando ele surgiu e quais são os maiores enfrentamentos para que ele permaneça vivo?

Em 2011, a Trip Teatro assumiu esse espaço que estava abandonado há anos. Em parceria com a universidade (Centro Universitário para o Desenvolvimento do Alto Vale do Itajaí - UNIDAVI), reformamos o local e desde então mais de 400 atividades foram realizadas. Ganhamos um excelente kit de iluminação cênica em um edital da FUNARTE e sempre colocamos a estrutura da Trip à disposição dos grupos que ali se apresentam. Nosso desafio nunca foi com a manutenção, considerando que não temos custos com aluguel, luz, água etc. Nosso desafio sempre foi garantir programação, por meio de recursos públicos, aliás, cada vez mais escassos. Mas contamos também com a generosidade de companhias que preveem apresentações nesse espaço dentro de seus projetos. Recentemente a Associação Comercial e Industrial de Rio do Sul se mudou para o mesmo parque onde o Teatro Embaixo da Ponte se encontra, e estamos construindo uma parceria que dará bons frutos para a cidade.



SóFridas, 2020. Direção: Sandra Vargas. Acervo do grupo.


O teatro de animação é uma das principais linguagens da Trip Teatro. Você poderia nos falar sobre seu contato com essa arte? O que mais lhe fascina nesse jogo de animar a matéria?

Antes de entrar para a Trip eu tinha até um preconceito com relação ao teatro de animação. Talvez pelas referências infantilizadas que eu tinha até então. Quando comecei a ver esse universo mais profundamente, aconteceu um encantamento. Descobri o quanto é incrível, quantas possibilidades que o teatro de animação apresenta. Fiquei fascinada. Um boneco na mão ganha vida própria, e isso não é uma falácia, o boneco ganha, realmente, vida própria. O boneco toma conta, diz coisas que eu não falaria, e isso é mágico. Virou uma paixão.


A Trip Teatro foi fundada em 1989, ou seja, num período em que as políticas públicas para o setor cultural eram muito precárias. Avançamos um tanto nas décadas seguintes e hoje estamos mergulhados no autoritarismo e num processo de criminalização da arte constante. Como se não bastasse isso, ainda estamos diante de uma pandemia. Como você tem encarado esses tempos? Conseguiram se adaptar às exigências tecnológicas impostas pelo distanciamento?

Sempre tivemos um olhar comercial para nossas obras, sem comprometer o olhar artístico e crítico. Mas uma obra teatral tem que ser viável a médio e longo prazo, não pode ser produzida e logo descartada. Por isso que praticamente todas as obras que produzimos nos últimos 25 anos continuam em cartaz. Essa relação comercial nos permite suportar melhor as incertezas das políticas públicas. Sobre a pandemia, fizemos algumas poucas concessões, apenas duas obras: O Velho Lobo do Mar e SóFridas ganharam versões on-line, por conta de contratos previamente firmados. Decidimos por esperar o retorno presencial sem “queimar algumas fichas” e utilizar o tempo (565 dias) para outras atividades, entre elas ensaios, manutenção do material cênico, pesquisas, projetos, etc.



Sou lenda sou Maria (primeira versão, 2014). Direção: Tati Mileide. Foto: Ana Gaebler.


Todos os detalhes são muito bem cuidados nos espetáculos de vocês. O menor e minucioso objeto, a luz, o cenário, figurino, enfim, os trabalhos de vocês são carregados de cuidado e delicadeza. Você acha que, de algum modo, a atual exigência de se apresentar virtualmente não privilegia a amplitude poética que vocês dão aos espetáculos?

Nós estamos vendo as apresentações virtuais ao longo da pandemia como uma opção, não como uma exigência. Opção que para nós traz menos benefícios ao fazer teatral que privilégios. A percepção facilitada de detalhes, que podem passar despercebidos numa apresentação ao vivo, não se sobrepõe à força do encontro, do vibrar juntos, da interação, do contato. O rito teatral não ocorre através de uma tela. Coisas interessantes podem ocorrer, mas longe daquilo que acreditamos ser teatro.

Na sua compreensão, qual é o papel da arte e do artista? O que podem a arte e o artista num contexto tão asfixiante quanto o nosso?

A arte e o artista podem nos salvar. Podem nos dar a oportunidade de respirar, de ver claramente aquilo que nos oprime e apontar caminhos para uma saída. Ou pode apenas nos ajudar a resistir até que um novo cenário se apresente.


A Trip Teatro é uma das mais longevas companhias de teatro em atuação em Santa Catarina. Talvez hoje só o Grupo Teatro Armação e O Dromedário Loquaz tenham ultrapassado a casa dos 35 anos em atividade. A Trip está inserida num contexto de importantes grupos e companhias, tais como Dionisos Teatro, ERRO Grupo, Cirquinho do Revirado, Téspis Cia. de Teatro, Cia. Experimentus, Teatro Sim... Por Que Não?!!!, entre muitas outros. Qual é a sua relação com esses coletivos?

É de respeito e admiração por todos e de parceria profissional com alguns. Praticamente todas estas companhias já passaram por Rio do Sul através de alguma oportunidade criada pela Trip Teatro. Por meio de festivais e eventos organizados por nós, ou pelo apoio local e espaço cedido. Dessa forma, ajudaram também a consolidar a nossa história, pois nosso público quer ver teatro, não só aquele que fazemos. A admiração não é somente pela longevidade (que traz consigo experiência, luta e conquistas que extrapolam o fazer teatral), mas também pela qualidade artística, pela pluralidade de linguagens e pela amizade. Estas companhias colocam Santa Catarina em grande destaque no cenário teatral brasileiro, muitas com alcance internacional.


Se você tivesse que escrever algo sobre os princípios poéticos, éticos e estéticos que norteiam a vida e arte dos integrantes da Trip, o que escreveria?

A poesia e a estética de nossas obras brotam durante o processo de criação de cada novo espetáculo. Difícil explicar de onde surgem, mas creio virem daquilo que somos somados ao que buscamos. Já nossos princípios éticos têm relação direta com o respeito ao público. Falamos daquilo que acreditamos ser importante, mostramos aquilo que vale a pena ser visto. Tratamos nosso público com todo o cuidado que merece, e isso se faz nos detalhes: no acabamento das obras, na recepção sorridente, na limpeza do ambiente, na clareza de informações, no tempo dedicado às fotos e perguntas ao final de cada apresentação, no aceno de despedida. Esse cuidado também significa “acessibilidade”, cada vez mais presente em nossas apresentações.



Entramos num ano decisivo porque temos eleições e a possibilidade de retomar um destino mais civilizatório. Para a atriz Tatiane, quais são os grandes desafios na cena e fora dela?

Dentro da cena os desafios seguem os mesmos: criar, produzir, ensaiar e apresentar. Difícil dissociar dentro e fora da cena, pois aquilo que fazemos dentro da cena precisa chegar fora e impactar as pessoas. As políticas públicas para a cultura garantem isso, em certa medida. Um governo que valoriza a cultura, valoriza muito mais que isso e quem ganha é toda a sociedade: há melhoria de índices em outras áreas como educação, saúde, segurança pública, economia, etc. Torçamos por um destino mais civilizatório. Aquilo que fazemos dentro da cena precisa sair dos ateliês, das salas de ensaio. As políticas públicas são fundamentais para que os bens culturais cheguem até as pessoas, sobretudo as mais vulneráveis. Um governo que valoriza a cultura, valoriza as pessoas, a sociedade. Por isso penso que um futuro mais civilizatório trará benefícios tanto para dentro quanto para fora da cena.



Sou lenda sou Maria (primeira versão, 2014). Direção: Tati Mileide. Acervo do grupo.


Quando falamos que há uma exigência de migrar para o mundo virtual estamos falando de sobrevivência mesmo. A muitos grupos foi exigido trabalhar nesse modo virtual que ainda não sabemos ao certo como definir. Há grupos que não se adaptaram, outros que se adaptaram. Você, como receptora, tem assistido a trabalhos e os apreciado, neste momento, digo, trabalhos de outros grupos de forma virtual? Como é a experiência da recepção?

Não tive muito tempo para acompanhar os trabalhos on-line de outros grupos. Do pouco que assisti, foram raros os espetáculos nos quais vi alguma vantagem no formato virtual. Estive muito envolvida em outras atividades ligadas à educação e ao audiovisual durante a pandemia, desenvolvendo e coordenando atividades de formação para crianças no formato virtual. Pude atuar (como roteirista e atriz) neste projeto e foi uma forma de manter-me conectada com o ofício de atriz.


O que você daria a quem está começando/optando pelo teatro como profissão? Se tivesse que escrever uma carta a uma jovem atriz ou atriz iniciante, o que diria?

O que te faz feliz? Essa deveria ser a primeira coisa a se pensar quando se escolhe uma profissão. Se você é feliz, se dedica e é bom no que faz, já é um grande caminho percorrido em busca da realização e do sucesso profissional. Quando você trabalha com arte, principalmente na área do teatro, você acaba sendo multifacetado, e isso te dá oportunidade de “passear” por várias áreas, executar diversas funções e vislumbrar distintas possibilidades de renda.


Existe algum projeto novo em vista, para quando retornarmos completamente aos palcos?

Retomar as apresentações dos espetáculos do nosso repertório é o plano para 2022. E cultivar algumas ideias para novas montagens a partir de 2023.


Você fala da longevidade dos espetáculos da Trip Teatro. Existe algum que não tenha sido tão longevo? Essa longevidade é algo pensado já na criação do espetáculo, ou não, há uma preocupação conceitual/formal com isso?

Sempre há essa preocupação conceitual e formal. Por isso não há pressa quando iniciamos um novo projeto de montagem. Sobre o que vamos falar, para quem, em que ambiente, qual o tamanho da carga cênica... tudo deve ser considerado no projeto, antes de iniciar a produção de uma nova obra. Esse cuidado e paciência se justifica a médio e longo prazo.


Por fim, como você se definiria como atriz e como artista? Há algum aspecto de sua trajetória que não falamos, que você gostaria de abordar?

Não me arrependo das escolhas que fiz. Sou muito feliz e realizada fazendo a minha arte; ela pulsa em mim, faz eu me movimentar, pensar, respirar.

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