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ENTREVISTA COM ÂNGELA FINARDI



Ângela Finardi possui uma das carreiras mais sólidas e coerentes do teatro catarinense. Nesta entrevista, ela nos conta sobre sua chegada às artes cênicas, sua experiência em diversos projetos ao longo dos últimos 30 anos, além de trazer uma série de reflexões sobre o papel da mulher, da maturidade e do próprio fazer teatral, tanto como atriz e diretora quanto como professora de teatro. A certa altura, Ângela nos diz: “O processo de criativo no meu trabalho como atriz parte do corpo. É solitário no início, me sinto vulnerável. Eu prezo muito pelo trabalho coletivo. Não posso considerar que estive de fato sozinha até o final do processo em nenhum dos processos criativos.” Isso nos revela que ela é uma multidão: mulheres, vozes, personas, grupos estão em seu processo criativo e em seu pensar. Talvez por isso a sua presença cênica seja sempre da ordem do acontecimento poético, do abalo sísmico, das grandes revelações.


Ângela, como a arte e o teatro entraram na sua vida? Existe algum artista ou trabalho específico que fez com que você dirigisse o seu olhar para a arte? E quando decidiu que o teatro seria seu modo de expressão no mundo?

Aos três anos de idade eu me encantei com o triângulo na aula de musicalização do maternal. Fazia balé lá também. Em uma escolinha que, após muita insistência, me aceitou. (O exigido na época era uma criança de quatro anos, e não de três). Sempre tive um encantamento com a arte e a iniciação foi na escola. Meus pais não eram artistas e nem admiradores de arte, mas me permitiam fazer e experimentar. Pensando bem, acho que sempre me vi como artista. Desde muito criança. Levava a sério as apresentações de teatro e dança na escola, amava, ansiava por esses momentos. Eu também era um tanto transgressora. Lembro que em Lages, minha cidade natal, por volta dos oito anos, ao caminhar pela praça em frente à Catedral com minha amiga, cismei em escrever uma poesia no chão para deixar a praça “mais bonita”. Fui até a minha casa — eu morava perto — e peguei uma lata de tinta branca na dispensa e um pincel. Eu e minha amiga inventamos a poesia e, enquanto pintávamos, um guarda apareceu. Ele perguntou se tínhamos autorização, apontei para a prefeitura e disse que tinha falado com alguém lá. Mentira, lógico. Enquanto ele foi checar, terminamos correndo e fugimos para casa. Queria me lembrar da poesia; recordo que era algo sobre amor. Sobre artista ou trabalho específico que fez com que eu dirigisse o meu olhar para a arte... Fiz balé clássico dos três aos catorze anos, também em Lages. Lá ia assistir aos espetáculos do grupo Gralha Azul e lembro o meu encantamento ao ver um trabalho do Níni Beltrame, de cujo título não me recordo, mas que tratava da lenda da Serpente do Tanque. Era no Festival de Teatro de Lages - FETEL, um festival de teatro que ocorre até hoje. Eu fui uma criança muito inquieta. Tudo o que tinha na cidade eu fazia. Balé, jazz, sapateado americano, dança contemporânea, ginástica olímpica, piano, toquei na banda do colégio, aulas de canto, de teatro na escola. Aos dezesseis anos, me mudei para Joinville e foi justamente quando comecei a fazer dança contemporânea e conheci o Lucas David, um grande mestre para mim. Foi com ele, em 1992, 1993, que comecei a fazer teatro. Fazia aulas de dança contemporânea e teatro. Teatro físico era a grande febre do momento. Montamos um espetáculo bastante ousado na cidade, chamado Telos Mandala. A decisão sobre ter o teatro como forma de expressão no mundo ocorreu quando percebi que estar no palco dava sentido à minha existência, e que eu chegava a um estado, tinha uma conexão difícil de explicar em palavras. Um estado físico, um estado energético diferente, que me fazia sentir muito viva. Descobri isso tudo com as oficinas da Periplo Compañia Teatral (grupo que o André Carrera havia trazido para a Universidade do Estado de Santa Catarina - Udesc) e, depois, com o Carlos Simioni, do LUME — uma grande referência para mim. Jerzy Grotowski e Eugenio Barba me foram apresentados por Diego Cazabat e Carlos Simioni, e essa conexão, essa presença física me faz querer ser atriz até hoje. Voltando: dois anos antes do encontro com a Periplo, eu descobri que era possível viver de teatro profissionalmente em Joinville quando eu integrei o Unicórnio Grupo Alternativo de Teatro e Música, junto de Guilhermo Santiago. Apresentamos cerca de 300 vezes em cada ano os espetáculos Piuí – Um Trenzinho Imaginário e também O Segredo do Curumim. Com os dois fomos premiados no Festival Catarinense de Teatro - FCC e participamos do Festival Nacional de Teatro Infantil de Blumenau - FENATIB, que estava em suas primeiras edições. Em seguida conheci Nando Moraes e começamos a trabalhar juntos na Universidade da Região de Joinville - Univille. Com o Nando aprendi muitas noções de encenação teatral e tive acesso a um grande arcabouço teórico.



Telos Mandala (atriz) 1993. Iago Satini.

Acompanhamos a sua trajetória há muitos anos. Na verdade, da montagem de Seis Personagens à Procura de um Autor e A Casa de Bernarda Alba até hoje. Você já passou por várias linguagens e, atualmente, vem se dedicando ao teatro destinado à infância. Quais desafios esse público impõe ao teatro?

Fico feliz em conhecer vocês há tanto tempo e em saber que observam o meu trabalho, meu fazer artístico, que é parte significativa da minha vida, talvez a mais importante dela. Obrigada. Antes de fazer Seis Personagens e A Casa, eu já havia realizado as peças infantis Piuí – Um Trenzinho Imaginário e O Segredo do Curumim. Gosto também de dança-teatro e tenho fascínio sobre o universo da performance. Tive experiências profundas refazendo performances de grandes artistas, em um projeto chamado ArtiCIDADE, e meu último espetáculo adulto, um monólogo chamado Bio (círculo da vida), foi bastante intenso. Em toda a minha trajetória artística, fiz teatro para a infância e para a juventude e, mesmo com quase 50 anos, continuo fazendo. Sinto necessidade de estar com as crianças, de jogar com elas. A energia e a espontaneidade delas é algo que nutre o meu ser como artista. Mas é, sem dúvida, desafiador. A responsabilidade inicia na dramaturgia. O que dizer, o que é importante que as crianças do nosso tempo percebam, questionem, conheçam, se assombrem ou se maravilhem? Quais portas de diálogo podem ser abertas por meio do espetáculo? Como tocá-las em um mundo cada vez mais repleto de estímulos. Procuro acompanhar as transformações pelas quais passamos na contemporaneidade para buscar uma estética atrativa. Tenho percebido que a velha fórmula de criar um ambiente no qual os sentidos possam ser aguçados ainda é a que funciona. A criança tem ainda a vontade de olhar nos olhos, sentir seu corpo e, mais do que isso, sente necessidade de ser vista. Mas o avanço tecnológico, por exemplo, do Metaverso, faz com que eu, como artista criadora, precise estar muito atenta a quais possibilidades de jogo podem ser ampliadas ou enfraquecidas na fruição. (E quais cuidados e limites serão necessários para a saúde mental, falando em Metaverso). Então, ser capaz de dialogar com as crianças do nosso tempo, criar espetáculos sensíveis e significativos para as crianças aos 50 anos é instigante e me motiva como artista.


Uma das características do teatro feito em Joinville é que há uma espécie de mistura/troca entre os criadores. Você já trabalhou com Nando Moraes, Silvestre Ferreira, Lucas David, entre muitos outros nomes da cena teatral joinvilense. Gostaríamos que nos falasse um pouco sobre esse processo colaborativo do teatro feito na cidade?

É interessante perceber como em Joinville os grupos realmente trocam experiências. Fazendo teatro com o Lucas David, no início da minha carreira, eu ia assistir aos ensaios de Cárcaro, do Borges de Garuva, pois o Lucas fazia a preparação corporal. O Silvestre Ferreira, outra grande referência no teatro joinvilense, chamou o Nando para fazer a adaptação da dramaturgia de Sonho de Uma Noite de Verão,e eu também acompanhei os ensaios. Foi o Silvestre que incentivou que eu, Sabrina Lermen, Lucas David e Nando Moraes inscrevêssemos S.O.S – Uma Mulher Só no Festival Nacional de Teatro - FENATA e chegou a emprestar uma lona para compormos a parte do cenário que havia sido danificada em uma tempestade. Trabalhei com estes diretores e, também, com Borges de Garuva, que dirigiu A Confissão, um espetáculo criado a partir de um conto homônimo de Rubens da Cunha (preciso lembrar aqui, pois foi uma experiência breve, mas incrível). Não sei exatamente de onde vem esta ideia colaborativa no teatro joinvilense, mas ela é verdadeira. Claro que os grupos e os artistas têm suas diferenças estéticas, que vez ou outra possuem divergências em alguns aspectos, mas posso afirmar que a colaboração é, sim, uma característica muito presente. A Associação Joinvilense de Teatro - AJOTE foi criada dentro deste espírito de coletividade.



Antropometries (Metaperformance - Proj. Articidade). 2012. Fermanda Pozza.


Entramos em 2022 acometidos pela pandemia e por um governo que vem destruindo as políticas públicas para o setor cultural, sobretudo em âmbito nacional. Tudo se modificou em nossas vidas, das relações pessoais ao modo de se fazer teatro e arte de um modo geral. Além de atriz, você é educadora. Como tem se adaptado às novas exigências?

Tenho me adaptado com muita dificuldade. No início da pandemia, cheguei a ir à Sala de Teatro Antonin Artaud, na Univille, e chorei muito imaginando que jamais iria voltar a encontrar o público presencialmente ali. Tantas memórias de aulas, de oficinas, de ensaios, de apresentações. Depois, pensei: nada é capaz de fazer com que o Teatro morra. Se o Teatro sobreviveu à peste, ele há de sobreviver. Fui tentando me adaptar. Dar aulas para adolescentes que estavam muito deprimidos foi meu maior desafio, assim como dar aulas de palhaçaria no projeto “Palhaçoterapia”. Eu, que sempre gostei da presença física, de tratar de ampliação de energia, de Grotowski, Barba, Artaud, passei por dias bem difíceis nos quais não aguentava mais ouvir a palavra “reinvenção”. Mas fui me adaptando. Troquei experiências com amigues professores de outras instituições. Assisti a muitas lives, assim como todo mundo, e assim como todo mundo também tive oportunidade de acessar cursos e pessoas de muito longe. Aprendi a encarar a tela do notebook e a sua câmera como o olho da plateia, aprofundei meus conhecimentos sobre a linguagem do vídeo e, também, criei jogos divertidos para os aquecimentos com os alunos. Montamos trabalhos virtuais. Como atriz, participei de um espetáculo muito interessante proposto pela Valéria de Oliveira, do Grupo Porto Cênico de Teatro, chamado Outras Mulheres, junto de várias atrizes do estado. Cada atriz montou o seu monólogo em sua cidade e fizemos três versões do mesmo espetáculo no estúdio, nos três dias em que cada grupo de mulheres se encontrou. Assisto muito aos vídeos que o prof. Edélcio Mostaço faz tratando de Estética e tenho pensado muito a respeito. Creio que a virtualização do teatro é um caminho sem volta. Mas, por outro lado, vejo nos olhos dos alunos e do público um certo alívio e uma alegria imensa quando nos encontramos presencialmente. Como pretendo ser sempre uma artista capaz de criar e pensar a contemporaneidade, procuro estar atenta, aprendendo com as possibilidades e os avanços que a tecnologia traz. Para isso conto muito com minha companheira de cena e de vida, Prika Lourenço.


Como você entende todo esse campo da arte-educação, muitas vezes envolto em controvérsias?

Respeito muitíssimo Ana Mae Barbosa e todo o seu esforço para que a arte esteja no cotidiano escolar. Entendo a arte-educação como um espaço libertador na escola. Fruir, conhecer, criar são expressões da liberdade. Mas sempre vai depender da forma como as atividades forem conduzidas. Viola Spolin, em seus jogos teatrais, chama muito a atenção para a forma com a qual se pode intervir ao conduzir um jogo para que a espontaneidade não seja tolhida. Ao longo dos anos, cada vez mais percebo o quanto este espaço socializador que é a escola precisa ser um espaço de liberdade, e não de opressão. A Função da Arte é um texto do Galeano de que gosto muito. Memorizei-o há mais de vinte anos: “Diego não conhecia o mar. O pai, Santiago Kovadloff, levou-o para que descobrisse o mar. Viajaram para o Sul. Ele, o mar, estava do outro lado das dunas altas, esperando. Quando o menino e o pai enfim alcançaram aquelas alturas de areia, depois de muito caminhar, o mar estava na frente de seus olhos. E foi tanta a imensidão do mar, e tanto fulgor, que o menino ficou mudo de beleza. E quando finalmente conseguiu falar, tremendo, gaguejando, pediu ao pai: Me ajuda a olhar!” Esse estarrecimento provocado pela visão do mar é mágico. E não pode ser explicado pelo pai. Nem por Diego. Na profundidade e na vastidão da experiência somos tocados. E para que serviria a educação se ela não passasse pela educação dos sentidos? Sou professora de teatro e de palhaçaria no curso de Medicina da universidade. Em meio às disciplinas bastantes duras, vejo a arte como um veículo de humanização. A empatia precisa ser nutrida para que haja uma revolução altruísta.


Para você, qual é a grande tarefa de um artista, sobretudo num momento tão delicado quanto o que vivemos?

“O artista é a antena da raça”, disse Ezra Pound. Penso que a grande tarefa seja a de perceber o mundo em que vive, a sociedade, a cultura, para que através de sua criação possa afetar o outro com aquilo que o afeta. Como mulher-artista, procuro tratar de temas que me afetam. Meu fazer teatral é feminista. Antirracista. Antifascista.


A princesa margarida - um musical brincante. 2018-2021. Jéssica Michels.


Há toda uma discussão sobre a invisibilidade das mulheres mais velhas, maduras. Inclusive, não pintar mais os cabelos é, para muitas delas, uma forma de aparecer, de se colocar no visível. Como está sendo esse processo pra você, a experiência da maturidade, dos cabelos brancos?

A experiência da maturidade não é fácil. Vez ou outra eu me pego fazendo um balanço da vida. Estou quase completando 50 anos. Pinto os cabelos há 30, desde os 20. E um dia — quase 5 anos atrás — fui a uma apresentação de música erudita e vi uma mulher linda, muito elegante mesmo, de cabelos brancos. Beleza para mim é algo que importa. Gostaria que fosse diferente, mas acho que é estrutural, assim como o machismo. Não é fácil envelhecer em uma sociedade que cultua a juventude e na qual a beleza está atrelada a ela. Bem, resolvi experimentar os cabelos brancos e gostei. Aprendo a respeitar a lei da gravidade, a gostar das minhas rugas. É um treino cotidiano o de aceitar a passagem do tempo e suas marcas. Confesso que eu curtia mais quando meus cabelos brancos não eram moda como são agora. Foi também um ato de rebeldia. Tento nutrir a juventude da alma, gosto de aventuras, pedalo mais de 100 km aos finais de semana, viajo de bicicleta. Namoro uma mulher negra e gosto dos contrastes dos nossos cabelos e da nossa pele. De novo penso o quanto a liberdade é algo que valorizo e o quanto o desejo de liberdade me acompanha.


Sua carreira teve personagens bem marcantes, normalmente cheios de paixão, de uma grandiloquência dramática e de uma poesia contundente. Como se dá o seu processo de preparação para construir suas personagens?

Sempre inicio o processo de criação de personagem com um treinamento físico que me leve quase à exaustão. Com esse corpo “dilatado” pelo treinamento energético, pesquiso formas de caminhar, de respirar, exploro vocalidades, timbres. Gosto que o figurino seja parte do processo de pesquisa. A facilidade ou dificuldade em andar com uma saia justa funciona como uma “ignição” psicofísica. Assim como o sapato, a forma de andar imposta por ele. Sinto mesmo o figurino como uma segunda pele da personagem. Escolho perfume ou a ausência dele, música, tudo é estímulo. Stanislavski está sempre presente. Procuro os objetivos da personagem, as motivações para cada ação. Com A Casa de Bernarda Alba foi assim; com a Enteada de Pirandello também. Com a Maria, personagem de S.O.S - Uma Mulher Só, eu fiz um trabalho de mímesis corpórea. Entrevistei outras mulheres e escolhi uma para a mímesis. Trabalhamos eu e Sabrina Lermen, orientadas pelo Lucas David e pelo Nando Moraes, com duas representações físicas da mesma personagem — uma grotesca e uma sublime. Em Bio (círculo da vida) também trabalho com mímesis corpórea para fazer as diferentes personagens. De forma geral, meu trabalho é este: começo pelo corpo, pelo treinamento corporal, paralelamente vou estudando e memorizando o texto, pesquisando a caracterização, experimentando elementos, adereços, figurinos. Nas experimentações, quando elejo e vou fixando algumas partituras físicas, surgem memórias. O lado bom da maturidade é que acumulei experiências vividas. Diferentes tipos de memórias. E tudo vira material de cena. Ano passado trabalhei com radioteatro e foi a primeira vez que não fiz treinamento energético antes de compor as personagens. Dei uma boa alongada apenas. Tenho percebido que o corpo memoriza como ocorre o trabalho energético. Mesmo estando atenta ao microfone no estúdio e mantendo a voz na direção dele, o corpo se moveu obedecendo às imagens mentais, às ações partindo do quadril, na maioria das vezes. Foi um trabalho bastante intenso e desafiador o de pesquisar diferentes vozes para as personagens. Isso porque foram 20 historietas, sempre com personagens diferentes.


Você poderia nos falar mais sobre o projeto ArtiCIDADE? Como ele foi concebido e executado?

O ArtiCIDADE foi um projeto concebido por Alena Marmo e Jefferson Kielwagen com a intenção de pensar a cidade como um espaço não somente de arte, mas de experiências artísticas, tanto por parte do artista, autor da ação, quanto por arte do público, autor de sua própria experiência. Foi realizado pelo Museu de Arte Contemporânea Luiz Henrique Schwanke – MAC Schwanke, em Joinville, em 2009, 2010 e 2012. A edição da qual participei foi a de 2012. Ela propunha aos artistas o desafio de pensar a arte para além de um espaço de ação, um espaço de performação. Eu, Sabrina Lermen, Lucas David, Samuel Kühn, Robson Benta fomos os artistas convidados para realizar uma série de reperformances inspiradas no conceito de Marina Abramovic de meta-performance, que consiste na apropriação e reprodução de performances do passado, no entendimento de que elas só existem no tempo presente. Realizamos vários encontros para viabilizar as reperformances Antropometria, de Yves Klein; O Artista está Presente e Autorretrato com esqueleto, de Marina Abramovic; Cut Piece, de Yoko Ohno; e Experiência número 3, de Flávio de Carvalho. Antropometria foi realizada em um dos galpões da Cidadela Cultural Antártica, um espaço que à época tinha projeto para sediar o MAC Schwanke, mas que atualmente está interditado. Até hoje este prédio, que fica em frente ao Galpão de Teatro da AJOTE, exibe as marcas de tinta azul impressas pelos cinco corpos nus para um público de cerca de cem pessoas ao som de um acordeon. A única reperformance anunciada foi esta de abertura. As outras foram realizadas em espaços urbanos, explorando a cidade e seus movimentos, a geografia social, sem nenhuma divulgação, para que pudessem surpreender o espectador. Além de Antropometria, reperformei Cut Piece e O Artista está presente, que hoje chamaria de A Artista está presente... Além da experiência de intensa liberdade com a tinta azul, as duas outras foram bastantes significativas. Artistas sabem que a performance exige entrega. Muitas vezes risco físico. Cut Piece foi realizada no hall da escada rolante do Shopping Muller, e eu me lembro do desespero de uma mulher vendo as pessoas cortarem minha roupa e meus cabelos. A ação de pegar a tesoura que estava à disposição ia tomando conta de quem passava por ali e foi interrompida por uma mulher que estava indignada com a minha “inação”, com a minha entrega diante do que acontecia. Ela interrompeu o fluxo chorando e dizendo para a pessoa que estava com a tesoura: “Chega!”, “Parem com isso!” (Pensando a respeito, ao escrever isso em meio à barbárie a que estamos submetidos, em 2022, eu me pergunto onde está essa mulher? Onde estão essas vozes para darem um basta à violência a que estamos submetidas, submetidos, submetides?). O Artista está presente, de Marina Abramovic, foi realizada na praça e foi marcante. Permaneci ali por muitas horas, o tempo passou de forma rápida e me tocou bastante a ação das pessoas ao se sentarem à minha frente. Para além da energia, a projeção da subjetividade delas. Uma moça chegou a dizer o seguinte: “eu sei o que você está pensando a meu respeito”, quando na verdade eu estava apenas presente no tempo presente, aberta, olhar fixo nos olhos dela, buscando apenas receber o olhar dela.

O terceiro momento desta edição do ArtiCIDADE foi chamado de Espaço de Performação. Houve um edital para a seleção de oito propostas de performances de artistas de Santa Catarina. Proponentes de Joinville, São Paulo, Curitiba e Lages foram selecionados e executaram suas propostas em espaços da cidade. Angela Waltrick performou Corpo em Trânsito; Letícia Ramos, Eu Trânsito; Coletivo? (Eduardo Baumann e Melaine Peter), Transe, Trânsito, Transitório; Marina Zimermann e Sabrina Lopes, Fedor do Animal; Priscila dos Anjos - De Vento em Popa; Aline van Langendonck e Pedro Capelletti Inventário de Paisagem Escalonada; Robson Benta, artista negro, performou O Principe Chegou, no Museu do Imigrante de Joinville. Minha proposta, In-decências, foi realizada em elevadores da cidade. A leitura de contos eróticos — alguns inclusive eram passagens bíblicas — foi desafiadora para mim. O ArtiCIDADE de 2012 gerou uma publicação disponível na Biblioteca Municipal de Joinville para quem quiser pesquisar a respeito.


Você fez A confissão e Bio, dois monólogos. Como é para uma atriz tão envolta em grupos, em parcerias, em aulas, estar sozinha em cena? Há um processo diferente de construção nesses casos?

O processo criativo no meu trabalho como atriz parte do corpo. É solitário; no início, me sinto vulnerável. Eu prezo muito pelo trabalho coletivo. Não posso considerar que estive de fato sozinha até o final do processo em nenhum dos processos criativos. Tudo o que está em jogo com o meu corpo em cena muitas vezes é criado por outros artistas: o figurino, a iluminação, a trilha sonora, as projeções... A diferença é que em um monólogo o jogo não é com outros atores e atrizes, parceiros de cena, mas com a equipe técnica e o público. S.O.S Uma Mulher Só – uma adaptação de Una Donna Sola, do Dario Fo e Franca Rame – era para ser um monólogo, mas eu me sentia muito sozinha no início do processo. Acabei chamando a Sabrina Lermen, que fazia a preparação corporal para dividir a cena comigo. Fizemos a adaptação do texto, chamamos o Samuel Kühn. A direção concordou e foi maravilhoso. Foi uma tentativa de monólogo, com uma equipe. Em A Confissão, eu estava sozinha em cena, mas não durante o processo criativo. Rubens da Cunha, o autor, acompanhou vários ensaios. A direção foi do Borges de Garuva, a trilha sonora executada ao vivo pelo Rodolfo Nunhez ao piano, a projeção de vídeo operada pelo Borges. Eu me alimentei das reações do público, na breve experiência que tive com este trabalho. Em Bio (círculo da vida), como a dramaturgia foi criada a partir de entrevistas com muitas pessoas que se dispuseram a compartilhar histórias sobre cuidar e ser cuidada(o), tinha a Prika Lourenço que me ajudava a transcrever as cinquenta histórias escolhidas e compunha a trilha, um ator surdo, o Darley, que com o auxílio da Márcia, intérprete em Libras, ia contando as histórias que eram gravadas em vídeo, uma escritora cega me ajudando a inserir na dramaturgia fragmentos de audiodescrição, o Flavinho criando a iluminação. O processo criativo foi todo coletivo. Não estive e não estou sozinha em cena. Trago todas aquelas histórias e todas aquelas pessoas na memória. Recentemente fiz o Obscenidades para uma dona de casa, texto que compôs o espetáculo Outra Mulheres, uma coletânea de três monólogos. Foi desafiador, porque a partir da premissa de ter três elementos de cenário, um deles com a cor azul, a proposta era a de se autodirigir e apenas no dia da estreia encontrar com as demais atrizes no estúdio para fazer a transmissão ao vivo, mantendo uma sequência a ser combinada na hora. Então, tinha a solidão e o distanciamento provocados pelo primeiro ano de pandemia, os ensaios em casa, a busca pelos elementos de forma solitária e o mais diferente para mim: a ausência do “olhar de fora” durante o processo. Essa era a proposta da Valéria de Oliveira, proponente do projeto. Foi uma experiência diferente. Empoderadora. Na cena, joguei com as câmeras buscando pensar que do outro lado da tela havia alguém presente no tempo presente. A presença dos técnicos e das outras atrizes no estúdio foi importante. O olhar delas e deles me dava energia.


Você aborda rapidamente a experiência do radioteatro. Poderia nos dar mais detalhes deste projeto?

Conheci o radioteatro no início dos anos 2000, assistindo ao A Familia Sujo, com o grupo Cuidado que Mancha e direção da Mirna Spritzer. Estudei um pouco a respeito no mestrado, fiz uma oficina com a Raquel Grabauska e me interessei ainda mais. O Chorinho é 10!, projeto idealizado pela Marisa Toledo, do Sarau# Trio é a minha primeira experiência. É uma coletânea de 20 miniprogramas (10 para adultos e 10 para crianças), com cerca de 5 minutos cada um, contando histórias de grandes compositores do Choro: Pixinguinha, Joaquim Callado, Zequinha de Abreu, Chiquinha Gonzaga, Jacob do Bandolim, K-Ximbinho, Tia Amélia, Luiz Americano, Ernesto Nazareth e Waldyr Azevedo. Eu fiz a criação dos textos pesquisando a biografia destes chorões e choronas. Histórias da infância, como ocorreu a iniciação musical, fatos pitorescos, sempre fazendo citações de trechos de chorinhos consagrados, que foram executadas pelos músicos do Sarau# Trio: Cláudio Moraes (sax/flauta), Marisa Toledo (piano) e Rafael Vieira (bateria e percussão). No “Chorinho é 10!”, os músicos e eu fazemos as diversas personagens.A preparação vocal foi voltada à imitação de vocalidades, a mímesis vocal de pessoas escolhidas com perfis semelhantes aos das personagens imaginadas por eles. Foram muitas as personagens e vozes criadas. A Dora, filha da Marisa Toledo e do Cláudio Moraes, fez uma participação na história da Tia Amélia. A proposta de fazer um trabalho de radioteatro é a de levar a história deste gênero musical, o chorinho, para crianças e adultos que de outra forma não teriam acesso a ele. A execução foi realizada em seis rádios educativas que chegam a ouvintes de 68 cidades. O projeto foi realizado com recursos do Edital Elisabete Anderle de Estímulo à Cultura/Artes - edição 2020. A produção foi feita pela Sarau# Produções e pela Agência Cultural AqueleTrio. Atualmente é possível ouvir “Chorinho é 10!” no Spotify e no Youtube do Sarau# Trio.


Há alguma peça/personagem que você deseja fazer e que não fez ou mesmo algum autor que gostaria de investigar para colocar em cena?

Medeia e Hamlet são personagens que ainda não fiz e que tenho vontade de fazer. Mas Hamlet já passei da idade; ficará para a próxima vida. Tenho vontade de investigar a vida e a obra de Simone Weil. Acho-a uma filósofa interessantíssima. O fato de ela querer trabalhar no chão de fábrica para entender como se sente e como pensa a classe operária a torna grande aos meus olhos.



A Casa de Bernarda Alba (atriz). Foto: Iago Sartini


O teatro vem passando por transformações constantes. Passamos pelo império do texto, depois do ator, depois do encenador. Agora estamos num momento híbrido, em que tudo o que está em cena é constituído de dramaturgia, de signos. Não que antes isso não acontecesse, mas agora é estética, intenção. Barba, no livro Queimar a Casa, fala sobre isso tudo, inclusive numa dramaturga do espectador? Como você vê tudo isso?

Embora muitas vezes eu me pegue fazendo uso do termo dramaturgia referindo-me ao texto, compreendo que tudo o que está em cena é signo, comunica. Acho muito interessante quando Eugenio Barba fala das diversas dramaturgias em Queimar a Casa. Eu tenho este livro autografado por ele, tive a possibilidade de assistir às palestras dele e da Iben Rasmussen, que entrevistei, e a dois espetáculos do Odin Teatret. Foi em 2012, eu pesquisava treinamento vocal e buscava entender por que o quadril, e mais precisamente o ponto entre o cóccix (a base da coluna e o plexo solar), tão caro à Jerzy Grotowski e Eugenio Barba, era o local de onde partiam não apenas as ações físicas, mas as ações vocais orgânicas. Pretendia assistir aos espetáculos e observar a dramaturgia orgânica — que estava relacionada às ações físicas e vocais dos atores e das atrizes do Odin — como também dos objetos, das músicas, da luz, do espaço. Não foi possível analisar racionalmente, como havia me programado. A profusão de signos postos em cena em Ode ao Progresso me arrebatou de tal maneira, que eu não podia explicar, estava tomada pela emoção. Foi só tendo essa experiência que compreendi o que ele queria dizer sobre o seu processo dramatúrgico como diretor, que eu havia lido em Queimar a Casa. Essa orquestração dos elementos que considera não o público em forma geral, mas o espectador, tendo em conta a singularidade de cada pessoa, me leva a pensar a recepção do espetáculo como uma experiência individual. Larrosa Bondía, pedagogo e linguista, diz que a experiência não é o que passa, o que acontece, o que toca, mas o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Para que a experiência aconteça é necessário que haja abertura do sujeito, um sujeito que não se opõe, nem se impõe, mas se expõe. A experiência pressupõe, portanto, o risco. Compreendo que a dramaturgia da direção de Barba não é passiva, mas age. Age ao estar aberta para a experiência, age cinestesicamente acompanhando a dança de impulsos das ações físicas e vocais, age buscando entender a trama de acontecimentos para o sentido do espetáculo, age capturando um significado do espetáculo, o que lhe pode ser íntimo. Barba trata das dramaturgias do espetáculo fazendo uma alusão à biologia. Ele diz que na biologia é necessário fazer uma distinção não apenas pelos componentes de um mesmo organismo, suas partes, seus diferentes órgãos e sistemas, mas também pelos níveis de organização celular. Em um espetáculo, a dramaturgia orgânica, para ele, é o seu sistema nervoso; a dramaturgia narrativa, o seu córtex; e a dramaturgia evocativa é aquela parte que em nós vive no exílio. Compreendo que o espetáculo para Barba é uma profusão de signos, orquestrados pela direção em camadas sobrepostas com o intuito de tocar cada espectador. Neste evento promovido pelo SESC, eu me vi escrevendo uma carta a Eugenio Barba – que não tive coragem de entregar. Isso é quase uma confissão: escrevi uma carta desejando integrar o Odin, um grupo que tinha 44 anos de formação. Escrevi emocionada, com a espontaneidade de uma criança que deseja ser levada pelo circo. Essa experiência potente que tive ao assistir ao Odin; minha dramaturgia como espectadora eu vejo como o encontro com as demais dramaturgias da cena, um quiasma merleaupontiano, o espaço de entrecruzamento, o “entre”, espaço em que tocante e tocado se fundem. A energia que me faz querer fazer Teatro, que mantém viva a minha chama é a que experimentei ao assistir ao Ode ao Progresso.


Ângela, somos imensamente gratos por este diálogo. Obrigado por aceitar conversar conosco. Em meio a tantas inquietações, gostaríamos que você nos falasse um pouco sobre o futuro, sobre a arte e a vida que nos espera nos teatros e nas esquinas?

Sou imensamente grata por me provocarem essas reflexões. Sobre o futuro, penso que o Teatro se faz como sempre, necessário, e se fará cada vez mais presente. Após dois anos, o Verão Teatral — mostra promovida pela Associação Joinvilense de Teatro — volta a acontecer de forma presencial. Estamos de volta. Os ingressos têm esgotado cinco minutos após a abertura da bilheteria. As pessoas estão ansiosas pelo encontro. Pelo reencontro. A plateia tem sido formada por pessoas antes não vistas, para além do público cativo que retorna ao teatro emocionado. Existe fila de espera. Isso me leva a pensar que as experiências de recepção dos espetáculos que ocorrem nos eventos presenciais não perderão espaço para as experiências virtuais. Penso que ambas ocorrerão, de agora em diante, assim como a continuidade dos espetáculos híbridos. Como professora de teatro e diretora, percebo que a velocidade experimentada pela virtualização das relações tem afetado cada vez mais a percepção do tempo. Existe uma certa impaciência com processos criativos de longa duração. Uma sociedade deprimida ou ansiosa e cada vez menos presente no tempo presente. A sociedade líquida, de Zygmunt Baumann, caracterizada pela fluidez das relações, impõe a mim como professora e diretora o desafio de gerar processos criativos que resultem em trabalhos potentes, ainda que mais curtos.


Ah, e por último, existe algum aspecto da sua trajetória que não abordamos e que você gostaria de falar?

Creio que o essencial foi contemplado na nossa conversa. Agradeço muito.










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